A deficiência, no Brasil, foi tratada ao longo da história, pela perspectiva religiosa, assistencial ou médica. A compreensão dessa história não pode ser dissociada dos processos de exclusão social. Começando pela política de exclusão dos primitivos indígenas, passando pelo assistencialismo dos jesuítas, a violência da escravidão, o pensamento médico no Brasil, a concepção de deficiência e as práticas a ela relacionadas foram construídas, ao longo de nossa história, como questões relativas aos ambientes hospitalares e assistenciais.
Outros fatores também reforçaram essa cultura. Em terras brasileiras, principalmente no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, foi bem considerável o número de médicos que pesquisaram, escreveram e publicaram trabalhos científicos sobre pessoas com deficiências, sobretudo, as mentais, preocupados com a aprendizagem dessas crianças: “O despertar dos médicos nesse campo educacional pode ser interpretado como procura de respostas ao desafio apresentado pelos casos mais graves, resistentes ao tratamento exclusivamente terapêutico, quer no atendimento clínico particular, quer no, muitas vezes, encontro doloroso de crianças misturadas às diversas anomalias nos locais que abrigavam todo tipo de doença, inclusive os loucos.” (JANNUZZI, 2006, p. 31)
A medicina passou a influenciar o modo de se conceber a deficiência. Com a criação das cadeiras de Cirurgia e de Medicina e Cirurgia, em 1808, na Bahia e no Rio de Janeiro respectivamente, que passaram, em 1832, a Faculdades de Medicina, vários médicos passaram a se preocupar com a questão e, mais tarde, tiveram atuação direta como diretores ou professores das primeiras instituições brasileiras voltadas para esse público.
Foi na segunda metade do século XIX, em paralelo à implantação de hospitais públicos que o Estado passou a intervir também na área de doenças mentais – tratadas então em rigoroso isolamento. Surgiu o Hospício D. Pedro II em 1842, no Rio de Janeiro e, em 1852, o Asilo Provisório de Alienados, em São Paulo, origem do Hospital Psiquiátrico do Juquery, no atual município de Franco da Rocha (Grande S. Paulo), nome do médico que organizou a instituição, em 1898, entre outros. Um número considerável de pessoas com deficiência mental, até mesmo por falta de exames e diagnósticos mais precisos na época, eram confundidos com doentes mentais e internados indiscriminadamente nessas instituições. Juliano Moreira, médico e nome importante na história da psiquiatria brasileira, chegou a ser fundador de uma instituição para pessoas com deficiência mental. Franco da Rocha, no ano de 1921, em São Paulo, construiu um pavilhão para crianças no Hospital de Juquery. Mas já eram iniciativas que visavam alguma perspectiva pedagógica, que, segundo Jannuzzi (2006), já apontavam algo positivo: “Percebo que esses pavilhões anexos aos hospitais psiquiátricos, nascidos sob a preocupação médico-pedagógica, mantêm a segregação desses deficientes, continuando pois a patentear, a institucionalizar a segregação social, mas não apenas isso. Há a apresentação de algo esperançoso, de algo diferente, alguma tentativa de não limitar o auxílio a essas crianças apenas ao campo médico, à aplicação de fórmulas químicas ou outros tratamentos mais dramáticos” (p. 38).
Havia já nessa época uma percepção da importância de educação, oriunda do campo pedagógico, em sistematizar conhecimentos que fizessem dessas crianças sujeitos de escolarização: “Daí as viabilizações possíveis, desde a formação dos hábitos de higiene, de alimentação, de tentar se vestir etc. necessários ao convívio social. Elas colocam de forma dramática o que se vai estabelecendo na educação do deficiente: segregação versus integração na prática social mais ampla” (JANNUZZI, 2004, p. 38).
Entre os primeiros médicos que se dedicaram à questão, havia uma preocupação de estabelecer uma catalogação de anormalidade. Pessoas com dificuldades pedagógicas seriam os dotados de inteligência e instrução em grau inferior a sua idade. E, visando completar os exames precários das chamadas “crianças com defeitos pedagógicos”, acrescentava-se como modelo do exame médico uma ficha contendo itens em relação a observações físicas do aluno.
ULYSSES PERNAMBUCANO E AS PRIMEIRAS AÇÕES BRASILEIRAS
Uma visão mais normativa das pessoas com deficiência mental no Brasil teve início com Ulysses Pernambucano de Melo Pernambucano (1892–1943). Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1912, ficou conhecido como psiquiatra, neurologista, psicólogo, antropólogo, educador, pesquisador e formador de muitos médicos e pioneiros da psicologia, oriundos das escolas normais. Colou grau de Doutor em medicina, defendendo a tese “Sobre algumas manifestações nervosas de Heredosifilis“. Ao longo de sua carreira, dentre os cargos e entidades fundadas por ele, estão: Diretor da Escola Normal Oficial de Pernambuco (1923-1927), Diretor do Ginásio Pernambucano (1928-1929), Diretor do Hospital de Doenças Nervosas e Mentais (1924-927), Diretor da Tamarineira (1931-1935), Diretor do Hospital de Alienados de Recife (1931), Diretor do Hospital de Doenças Nervosas e Mentais de Recife (1924). Fundou o Sanatório Recife (1936), uma escola para a educação de “crianças anormais” (1925), o Instituto de Psicologia de Pernambuco (1925). Foi Professor substituto da cadeira de Psicologia (interinamente) da Escola Normal Oficial (1924), participou da criação da Liga da Higiene Mental de Pernambuco, da Sociedade de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental do Nordeste, depois do Brasil. Participou da reforma da “Assistência aos Psicopatas de Pernambuco”.
Pernambucano teve influência inicial de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Nascido em Vargem Grande, Nina fez o curso de medicina na Bahia e o Doutorado no Rio de Janeiro, defendendo a tese intitulada “Das Amiotrofias de Origem Periférica”, sobre três casos de paralisia progressiva numa família, em 1887. No ano seguinte, clinicou em São Luís. Após esse rápido regresso à terra natal, onde foi incompreendido e hostilizado pelos médicos conterrâneos por atribuir à má alimentação problemas de saúde da população carente da região onde vivera, resolveu fugir do provincianismo e do apelido de Dr. Farinha Seca e adotar definitivamente a Bahia como morada. Em 1889, assumiu a cátedra de patologia e medicina legal da Faculdade de Medicina da Bahia, encontrando um ambiente favorável às pesquisas sociais que tanto o atraíam, herdeiras diretas da antropologia criminal do médico italiano Cesare Lombroso e, obviamente, do inicial positivismo sociológico na área penal. Em Salvador, havia mais de dois mil africanos catalogados na época da abolição da escravatura. Isso estimulou o médico a dedicar-se à clínica médica e ao atendimento dos menos favorecidos, sendo logo intitulado “Doutor dos Pobres”.
“ESCOLAS PARA ANORMAIS” – A PRIMEIRA AÇÃO EFETIVA
Optando por trabalhar e estudar as classes excluídas pode ser notada já quando, aos 26 anos, Ulysses Pernambucano, viu uma possibilidade de concretizar sua vocação de docente quando, em 1918, com sua monografia “Classificação de crianças anormais: a parada do desenvolvimento intelectual e suas formas; a instabilidade e a astenia mental”, elaborada para concurso de professor catedrático da recém criada cadeira de Psicologia e Pedologia da Escola Normal Oficial do Estado de Pernambuco – o que, segundo o historiador Paulo Rosas, foi o marco inicial da Psicologia do Recife. Tratava-se de uma dissertação de 45 páginas, abordando a classificação das crianças com deficiência mental; a parada do desenvolvimento intelectual; a psicologia dessas crianças; o diagnóstico da deficiência, através de uma abordagem sobre a educação médico-pedagógica; um referencial bibliográfico de 23 títulos com predominância da literatura médica francesa. Ulysses teceu significativas observações pessoais, destacando essas crianças como sendo sempre vistas como uma unidade biopsicossocial.
Entre os cinco candidatos, ele obteve a melhor nota, não sendo nomeado por injunções políticas, onde o governador do Estado nomeou o candidato que havia ficado em segundo lugar. Mas, a julgar pela temática por ele apresentada, segundo palavras de Medeiros (2001), “já se infere o pioneirismo do jovem concorrente Ulysses: o estudo de crianças excepcionais, na época, chamadas de ‘anormais’” (p. 32). Outro fato importante apontado por Rosas naquele momento, como relevante, foi a própria monografia de Pernambucano, mais tarde destacada por Pessotti (1984, p. 193), como a “primeira tese brasileira no campo da deficiência mental”. Medeiros (2001), ainda falando dessa monografia, destaca que nela “podem ser detectadas, embrionariamente, duas preocupações que vieram a caracterizá-lo intensamente: a criança excepcional e a psiquiatria social. Tais preocupações se tornaram linhas mestras de sua ação, de sua vida, de sua obra” (p. 33).
Só em 1923, o médico e psicólogo retornaria como diretor dessa escola, permanecendo no cargo até 1927, revelando seu espírito criador, preocupado com a formação de pesquisadores e produtores de conhecimento, sua capacidade de ação articulada e persistente, determinado reformador, sua vocação de pedagogo, o que posteriormente estimulou-o na criação da Escola para Excepcionais e do Instituto de Psicologia.
Na monografia de 1918, Pernambucano já havia enfatizado a importância de educação para crianças com deficiência mental e superdotados. Em um relatório de 1924, elaborado e encaminhado por ele ao Secretário do Interior e Justiça, o médico e psicólogo foi novamente direto ao assunto:
(…) ouso lembrar a necessidade de cogitar os nossos regulamentos de ensino de melhor aproveitamento das crianças bem-dotadas de inteligência, que avançam sobre os escolares da mesma idade. Atravessamos uma época em que as nações se impõem pelo valor dos seus filhos. Aproveitar aqueles que parecem na escola representar os futuros valores mentais, aquilo que eu chamaria de expoentes escolares, é dever de patriotismo. Poderíamos tentar a criação logo que estabelecêssemos os nossos testes de aptidão de uma escola para supernormais (PERNAMBUCANO, apud MEDEIROS, 2001, p. 46).
A escola proposta para os denominados supernormais1 não chegou a funcionar, mas a destinada às “crianças anormais” iniciou-se, funcionando durante alguns anos como uma classe especial do Curso de Aplicação anexo à Escola Normal. Entrando em uma fase preparatória de implantação, realizavam-se pesquisas junto aos alunos da rede pública de ensino, visando identificar aqueles com “dificuldades de aprendizagem”, projeto que contava com a dedicação exclusiva e intensiva de Anita Paes Barreto. Por questões burocráticas e políticas, essa “Escola para Anormais” não chegou a funcionar efetivamente, permanecendo como uma cadeira complementar do Curso de Aplicação. Mas, nas palavras de Diniz (2001), a iniciativa tornou-se um “grande e real marco no campo da Psicologia, tendo sido a partir daí que Barreto começou a desenvolver suas atividades de estudo e pesquisa na área da educação do excepcional. Foram lançadas experimentalmente as bases científicas para melhor conhecimento da infância, sendo desenvolvidas investigações sobre a presença de deficiências mentais entre crianças em idade escolar, dificultando a frequência a escolas comuns” (pp. 87-88).
Em 1925, proposto por Pernambucano, iniciou-se o funcionamento de uma pequena escola para “anormais” nas dependências do Sanatório Recife, nascendo como uma instituição particular ligada à Liga de Higiene Mental de Pernambuco. Era a primeira Escola de Excepcional do Brasil; dela surgiram várias outras criadas por ele, as chamada “Escolas para Anormais”. (Vale destacar que, anteriormente, o marco inicial das escolas para crianças com deficiência mental e “dificuldades de aprendizagem”, pois para crianças com deficiência visual e deficiência auditiva tivemos na segunda metade do século XIX, duas iniciativas de Dom Pedro II, com a criação do “Imperial Instituto dos Meninos Cegos”, em 1854, e do “Imperial Instituto dos Surdos-Mudos”, em 1856.).
Pernambucano preparou o pessoal para o trabalho a ser iniciado e como diretor reuniu pessoas interessadas nessa área, como Anita Paes Barreto, Sílvio Rabelo, Ana Campos, Anita Costa, Maria das Neves Monteiro, Maria Leopoldina de Oliveira, Alda Campos, Helena Campos, Maria de Lourdes Vasconcelos, Cirene Coutinho, Celina Pessoa, entre outros, tendo por objetivo a orientação e seleção de professores para escolas primárias, secundárias e profissionais; estabelecimento de testes pedagógicos, físico-psicológicos e diagnósticos de crianças com deficiência, sobretudo, as mentais; realização de estudos de psicologia patológica. Pernambucano assumiu o cargo de professor de Psicologia do Curso de Aplicação que, segundo Antunes (1991), “foi [aí] que surgiram as primeiras pesquisas com testes de aptidão, pedagógicos e mentais em alunos do curso primário do referido Curso de Aplicação, mas, mais que isso, Pernambucano implantou aí processos pedagógicos com base na Psicologia, o que, em outras palavras, significou a aplicação efetiva dos conhecimentos psicológicos à Educação” (p. 176). A respeito disso, Anita Paes Barreto – que procurou desenvolver uma nova pedagogia na linha chamada Escola Nova, de Lourenço Filho e Fernando Azevedo –, escreveu:
A criação do Instituto de Psicologia vinha, justamente, permitir entre nós, o estudo científico da criança normal e anormal, e a investigação, inicial, da presença dos deficientes mentais entre os escolares ou entre crianças em idade escolar, sem condições de frequentar a escola comum, exatamente em consequência da própria deficiência.
(…)
A primeira escola para anormais, criada em 1929, no RECIFE, não chegou a funcionar como tal. Mas, nem por isso, deixou de ser um grande e real marco. Sobretudo, porque pode-se dizer, com absoluta certeza, que, mesmo tendo sido posteriormente transformada numa cadeia qualquer de ensino primário, sendo colocada à disposição do Instituto de Psicologia, por solicitação de seu Diretor, não foi mais possível abandonar o problema, nem deixar de trabalhar pela sua solução, sempre presentes às interações daquele professor, comprovadas nas atitudes que se seguiram. O Instituto de Psicologia encarregou-se, então, da continuidade do estudo e da pesquisa para formação de pessoal especializado, ao mesmo tempo que cuidava da descoberta dos retardados mentais, onde pudessem ser encontrados (apud ANTUNES, 1991, pp. 176-177).
Cinco meses depois da criação da primeira “Escola de Anormais”, em 1925, nascia o Instituto de Psicologia que, segundo Barreto (1978, apud MEDEIROS, 2001), “vinha, justamente, permitir entre nós o estudo científico da criança normal e anormal, e a investigação inicial, da presença dos deficientes mentais entre crianças em idade escolar, sem condições de frequentar a escola comum” (p. 53). Pernambucano que aprendera psicologia no dia-a-dia do consultório médico, tinha a consciência de que ainda não poderia contar com um corpo de auxiliares competentes, técnica e cientificamente. Por já acumular experiência suficiente oriunda da clínica geral e de suas atividades como sanitarista e psiquiatra, além de muita leitura apropriada, iniciou ele mesmo o “processo de treinamento ou orientação de estágio de jovens egressas da Escola Normal, curiosas e motivadas pelo novo e desafiador campo de trabalho” (ROSAS, 2001, p. 56). Tudo era conduzido a partir de pesquisas. Pernambucano preocupou-se em formar uma equipe de terapeutas interessados em educação e psicologia, com médicos e educadores sensíveis não apenas à deficiência mental ou à superdatoção intelectual, como também em compreender as patologias mentais e sua terapia. Eram “médicos e psicólogos formados à luz de uma mentalidade científica que os conduzia à pesquisa; e de uma compreensão humanística, ética e social dos problemas psicológicos e psiquiátricos, que os conduzia a uma atitude política, se bem que não necessariamente partidária” (ROSAS, 2001, pp. 62-63).
O Instituto produziu um fundamental e significativo acervo técnico-científico, dentre os quais destaca-se o trabalho “O teste A de Rossolimo em crianças normais e anormais”, de Maria das Neves Monteiro e Maria de Lourdes Vasconcelos, publicado nos “Arquivos da Assistência a Psicopatas de Pernambuco”, fundada em 1931, pelo próprio Ulysses Pernambucano. Teve sua denominação alterado para Instituto de Seleção e Orientação Profissional – ISOP, ficando subordinado à Secretaria de Justiça e Instrução. Em 09 de agosto de 1929, com um novo regulamento e objetivos definidos e mais ambiciosos, teve, entre suas atividades, “estabelecer testes aplicáveis aos diagnósticos das crianças anormais e supernomais”.
Durante esse período, Pernambucano ocupava paralelamente o cargo de Diretor do Ginásio Pernambucano (1928-1929). Em 1930, deixava a direção do Ginásio, sendo designado pelo Interventor Lima Cavalcanti para dirigir os serviços de assistência aos psicopatas do Hospital da Tamarineira, na época um verdadeiro depósito de doentes mentais, desde os que tinham pequenos distúrbios até os mais graves, que viviam encarcerados em cubículos gradeados e em calabouços, sujeitos às camisas de força e a choques elétricos, sem o menor cuidado ou uma diversificação terapêutica. Pernambucano que era professor da Faculdade de Medicina, em que trabalhavam homens como Otávio de Freitas e os irmãos João e Arnóbio Marques, fez uma reforma no hospital, tanto em seu aspecto físico como terapêutico.
Contando com a ajuda dos sócios da recém-fundada Liga e com doação de numerosas doações, as primeiras arrecadações foram insuficientes para o tamanho da empreitada, a Liga fez uma ampla divulgação nos meios de comunicação, sendo bem-sucedida. Conseguiram um grande terreno, a planta do projeto assinada pelo arquiteto Joaquim Cardoso. Em 25 de setembro de 1934, era lançada a pedra fundamental de escola. Por motivos de restrições e perseguições políticas contra Pernambucano, gerando-lhe dificuldades financeiras, diminuíram o andamento da obra. Por ter preferência por trabalhar pelos excluídos e marginalizados socialmente, gerou conflitos e atritos com elite e autoridades. Com a implantação do Estado Novo, foi denunciado por seus adversários como comunista e subversivo2, sendo preso por 60 dias e aposentado compulsoriamente do ensino público do Estado.
O médico e psicólogo faleceu prematuramente aos 51 anos, vítima de infarto fulminante, em 1943, no Rio de Janeiro, “tão na mocidade da velhice”, conforme escreveu seu primo, o antropólogo Gilberto Freire. A escola só ficou pronta após uma década da morte de seu idealizador, que com o empenho de seus antigos colaboradores e os membros da Liga, foi inaugurada em 05 de dezembro de 1953.
ANITA PAES BARRETO: DA INICIATIVA PRIVADA PARA UM ENSINO ESPECIAL PÚBLICO
É notório que o pioneirismo de Ulysses Pernambucano no campo da Educação Especial não foi um fato isolado. Contou com ação conjunta de muitas pessoas. Todavia, não desmerecendo os demais, temos que destacar o nome de Anita Paes Barreto nessa iniciativa. Nascida em 03 de junho de 1907, no Recife, aos 17 anos concluiu o Curso Normal, quando já se destacava por seu brilhantismo. Laureada com uma medalha de ouro em sua formatura, pelo então Diretor, Ulysses Pernambucano, obteve a outorga da “cadeira prêmio”, que lhe garantia nomeação imediata para a rede pública estadual de ensino, podendo escolher o local onde gostaria de lecionar.
No ano seguinte, 1925, era nomeada professora primária do Estado de Pernambuco, instigada por esse Diretor para Pernambucano a lecionar uma disciplina chamada “Educação de crianças anormais”, em uma época que ainda não havia praticamente estudo e investimento voltados para esses alunos. Com efeito, em depoimento prestado posteriormente, a professora Barreto esclarece que teve a honra de receber das mãos do próprio Barreto, um exemplar de sua tese de 1918, como um apelo para que se dedicasse ao problema da educação dessas crianças.
Nesse mesmo ano, por iniciativa de Pernambucano, nascia o Instituto de Psicologia. Uma das primeiras iniciativas do médico e psicólogo, foi chamar Barreto e outras ex-alunas da Escola Normal para integrar sua equipe. Colocada à disposição do Instituto, foi a primeira pessoa no Brasil a ser nomeada psicóloga para atuar em instituição pública. Chegou a presidir o órgão no biênio 1927/1928. E novamente obteve êxito, como afirma Rosas (2001), “sem deixar de insistir sobre a liderança de Ulysses Pernambucano e sua capacidade criadora, é inegável que o papel histórico alcançado pelo Instituto de Psicologia muito deve ao saber e à sensibilidade de Anita Paes Barreto” (p. 60).
Sob orientação de Pernambucano, Barreto teve uma rápida ascensão profissional. Juntos, publicaram, em 1927, o trabalho “Estudo Psicotécnico de alguns Testes de Aptidão”. Durante uma década (1925-1935), foi a principal auxiliar dele, realizando e coordenando inúmeras atividades. Participou da prática e da realização de estudos pioneiros no campo da Psicologia Aplicada. A partir de 1931, a professora coordenou várias pesquisas sobre a Revisão Pernambucana dos Testes Binet-Simon e Terman, cujos resultados foram publicados principalmente em Neurobiologia, Jornal de Medicina de Pernambuco e Arquivos da Assistência a Psicopatas de Pernambuco.
Em 1935, quando o Instituto foi extinto e Pernambucano preso, Barreto prosseguiu trabalhando com “crianças excepcionais”. No âmbito do ensino público só foi implementado efetivamente – através da promulgação do Ato n.º 137, de 27 de janeiro de 1941 e assinado pelo Interventor Federal em Pernambuco, Agamenon Magalhães – o dispositivo legal que fixava as características do “Externato Primário para Anormais Educáveis”, uma escola específica para a educação da criança denominadas “subdotadas”. Era a Escola Aires Gama, sendo no Diário Oficial do dia seguinte, designada a professora Anita Paes Barreto para exercer o cargo de Diretora, lá permanecendo de 1941 a 1957. Dentro desse período, em 1947, em uma medida de reconhecimento, essa instituição passou a denominar-se “Escola Especial Ulisses Pernambucano”.
Licenciada em Pedagogia no ano de 1948, tornou-se professora na Faculdade de Filosofia do Recife, atuando como primeira Psicóloga na Clínica de Conduta, criada em 1949, com a colaboração de Béla Szekely, na Escola de Serviço Social de Pernambuco – atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Em 1955, com a colaboração de Dilucina Lopes e Maria do Carmo Souto, realizou pesquisa sobre o psicodiagnóstico de Rorschach em Crianças, cujos principais resultados foram apresentados na VII Reunião Anual da SBPC. Entre 1959 a 1962, ocupou o cargo de assessora para Assuntos Educacionais na Prefeitura do Recife; fundou e dirigiu a Divisão de Ensino do Movimento de Cultura Popular (1960-64); foi presidente da Fundação Promocional Social (1963); Secretária de Educação do Estado, no Governo Miguel Arraes (1963-64); presidente da Fundação da Promoção Social (1963); Secretária de Educação de Pernambuco (1988-1991). Foi presa por 17 dias, como subversiva, em 1964. Em 1997, o Conselho Federal de Psicologia conferiu a Barreto a medalha “Reconhecimento dos psicólogos brasileiros pela contribuição no desenvolvimento da Psicologia como Ciência e Profissão”. Em seus últimos anos, recolheu-se à intimidade de sua família, falecendo no Recife, em 2003, aos 96 anos.
HELENA ANTIPOFF E O NASCIMENTO DO ENSINO ESPECIAL EM MINAS GERAIS
Na Reunião da Liga de Higiene Mental de Pernambuco em homenagem à memória de terceiro ano da morte de Ulysses Pernambucano, realizada em 05 de dezembro de 1946, a Conferência de abertura foi ministrada por uma já conceituada psicóloga. Em certo trecho de sua fala, essa respeitada profissional relatou:
Tive a felicidade de me encontrar com o Dr, Ulysses Pernambucano no primeiro ano de minha estada no Brasil, e de saber que nesta ocasião, em 1929-30, havia no Norte do País, orientado por um mestre tão sábio como criterioso, um intenso movimento de pesquisa psicológica. Bem antes que Minas Gerais, com seu laboratório de psicologia da Escola de Aperfeiçoamento pedagógico, tivesse realizado as suas pesquisas, aqui no Recife fazia-se uma abundante colheita de dados sobre a criança, revisão de escalas psicológicas, estandardização de um sem número de testes mentais, para o uso quotidiano da escala, da clínica psiquiátrica, do serviço de orientação profissional. Várias formas adaptadas, traduzidas, estalonadas em Recife foram também por nós adotadas, como os Testes Alfa, Ballard, etc. (ANTIPOFF, 1946, p. 247)
Essa psicóloga era Helena Antipoff, nascida em 1892 na província de Bielorrússia, em Grodno. Era filha de general do exército imperial, sendo sua família possuidora de muitos bens. Com a mãe, ela aprendeu as primeiras letras, indo mais tarde para São Petersburgo estudar em uma instituição com professores de nível universitário, que mantinham o método de ensino “ativos e passivos”, levando os estudantes a não dar crédito a afirmações gratuitas sem verificar a realidade, sendo que os estudos de Filosofia e Psicologia eram matérias de grande interesse dos alunos. Tinha 17 anos quando ingressou na Universidade de Sorbonne, Paris, seguindo mais tarde para a Suíça, lá estudando com o psicólogo Edouard Claparède, um dos pioneiros no estudo da aprendizagem infantil, no Instituto Jean Jacques Rousseau, em Genebra. Antipoff foi convidada a integrar a equipe de pesquisadores desse instituto, com Claparède. Dez anos mais tarde, Antipoff voltou à Rússia, ao encontro de seu pai, que estava muito doente. Casou-se com o escritor Victor Iretzky, tendo um filho chamado Daniel. Na Rússia, trabalhando como psicóloga, apresentou os resultados de suas pesquisas, que constatavam que o nível mental dos filhos de intelectuais era mais alto em comparação aos das outras crianças, sendo duramente criticada e perseguida, obrigada a deixar sua terra natal. Em 1926, Antipoff voltou a fazer parte da equipe de Claparède, desligando-se somente em 1929, quando veio para o Brasil, por indicação de seu mestre, com o desafio de aplicar seus conhecimentos, participando da implantação de uma Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico. Chegando a Belo Horizonte, uma de suas primeiras providências foi criar um laboratório na Escola de Aperfeiçoamento de Professores, local em que se realizavam pesquisas sobre o desenvolvimento mental das crianças, utilizando-se, nesse estudo, de testes trazidos da Europa. Os resultados obtidos indicavam uma média de idade mental muito abaixo da idade real das crianças. Ela, que já trabalhava com uma concepção de anormalidade diferente da predominante no Brasil, acreditava que tais pessoas poderiam adquirir autonomia e participar, também, da construção do país.
O Brasil vivia um período em que a preocupação com o ajustamento entre as ideias modernas e a realidade do país surgia com maior intensidade, caracterizando-se como um marco no desenrolar de nossa história. Numa sociedade de base urbano-industrial, vinda de uma tradição agrária, com uma política voltada para a industrialização, a racionalização da produção, o progresso tecnológico, o ensino profissionalizante e a complexificação do aparato político-administrativo do Estado, o homem passou a ser valorizado como ator de produção e integração nacional. Essa sociedade baseava-se numa política na qual a escola ganharia importância como peça fundamental para a constituição da nação; um instrumento básico para uma rápida transformação social, em um país que buscava constituir-se como nação “civilizada”. Isso permitiu uma aproximação entre as políticas e práticas educacionais e as idéias médico-higienistas, visando cuidar da criança brasileira para que viesse a se tornar um adulto saudável, disciplinado e produtivo, nos moldes de uma sociedade industrializada.
Os educadores passaram a ter o papel preventivo de organizar classes homogêneas, agrupando crianças com a mesma capacidade de aprendizagem e o mesmo desenvolvimento mental. Havia o objetivo de aumentar a produção dos alunos, com maior rapidez e eficiência, endossado com o respaldo científico da Biologia, da Psicologia e da Estatística. A avaliação das faculdades mentais, os testes psicológicos de inteligência, personalidade e aptidão, juntamente com os resultados de exames médicos e pedagógicos, definiriam a distribuição dos alunos na rede escolar. O domínio da Psicometria, por exemplo, no processo educacional, gerou a exclusão das crianças consideradas como “problemas” (com deficiências mentais, desvios de conduta, dificuldades de aprendizagem), sendo essas enviadas para estabelecimentos específicos, de forma a “proteger” a sociedade dos “males por elas trazidos”. Essas pessoas eram aquelas que não possuíam rapidez e precisão, não mantinham um comportamento esperado ou não apresentavam uma produtividade intelectual satisfatória, consideradas “deficientes” ou “anormais”, até o início da década de 1930. Foi nesse momento que a psicóloga veio atuar no Brasil.
Antipoff, que trabalhou anteriormente com crianças abandonadas na Rússia, já havia notado que estas obtinham resultados de testes muito abaixo da média, apontando algum tipo de prejuízo intelectual. Porém, tais crianças, no dia-a-dia, apresentavam-se “extremamente espertas, [revelando] prodígios de engenhosidade para lutar contra as dificuldades que a vida lhes deparava, e para assegurar a própria conservação” (ANTIPOFF, 1931, p. 78, apud, PINTO; JACÓ-VILELA, 2005). No Brasil, Helena verificou as mesmas condições em crianças de Belo Horizonte, permitindo-lhe desenvolver a hipótese de que haveria correlação entre pobreza e baixos resultados nos testes. Notou também defeitos na elaboração de tais testes, que avaliavam “apenas aquela inteligência disciplinada, dentro dos moldes da classe social hegemônica, de acordo com a moral da família burguesa, a disciplina da escola e as regras da sociedade” (PINTO; JACÓ-VILELA, 2005). Segregavam-se, assim, crianças que não tivessem essas condições sociais, que não se enquadravam às exigências impostas pelos testes baseados em padrões determinados diversos da realidade da criança.
Batizado de “inteligência civilizada” pela própria psicóloga, ela passou, a partir desse conceito, a defender uma abordagem que apontava para o papel da interação social no desenvolvimento intelectual. Mesmo com algumas restrições, os testes de inteligência foram aceitos como instrumento de detecção de anormalidade, embora não mensurando aptidões ou disposições inatas, mas aquilo que o indivíduo recebia de seu meio familiar, grupo social e da própria escola: mediam assim a inteligência civilizada (ANTIPOFF, 1931, pp. 44-45). A psicóloga utilizou esses testes como critério de hierarquização das classes homogêneas, argumentando que davam o “grau de disciplina e de cultura mental, o grau do esforço intelectual que os indivíduos são capazes de fornecer numa prova de gênero” (ANTIPOFF, 1930, p. 22).
Antipoff considerava a inteligência como produto complexo, decorrente não apenas das disposições intelectuais inatas e do crescimento biológico, mas também de um conjunto de fatores do meio social, das condições de vida e da cultura nas quais a criança se desenvolve. Por isso, ações pedagógicas, somadas à educação e instrução recebida no ambiente familiar, seriam, pois, decisivas para uma boa formação intelectual. Acreditando nessa tese, iniciou um trabalho com crianças que tinham resultados não satisfatórios nos testes, afastando-se da zona de normalidade. Segundo palavras da própria psicóloga, “o nível baixo nos testes de inteligência para muitas crianças de meio social inferior e crescidas fora da escola não prognostica absolutamente o futuro atraso nos estudos, pois nesta idade o organismo ainda está bem plástico e o cérebro capaz de assimilar com grande rapidez e eficiência os produtos da cultura intelectual” (ANTIPOFF, 1932, apud CAMPOS, 2002, p. 22).
AS CONCRETIZAÇÕES DAS INICIATIVAS DE ANTIPOFF
Acreditando em programas de educação compensatória, Antipoff passou a pedir a ajuda das elites locais, visando promover programas de reeducação para crianças até então isoladas de todos e dos contatos sociais, “entre as quais podiam se distinguir os excepcionais ‘orgânicos’, portadores de distúrbios de origem hereditária, e os excepcionais ‘sociais1, isto é, aqueles cujas condições de vida familiar ou social impediam uma adequada estimulação” (CAMPOS, 2002, p. 22).
Crianças até então rotuladas com termos pejorativos como anormais, retardadas, insuficientes, revoltadas, dando ideia de algo definitivo, irremediável, sem solução, como se nada pudesse ser feito por elas – afinal, a partir do pressuposto biológico, essas crianças já nasceriam com tais características. E, visando uma adoção de um termo neutro, utilizado em relação a todas as crianças que fugissem de alguma forma à norma, precisando de atenção especial, Antipoff passou a intitulá-lo de “excepcionais”, ou seja, aquelas crianças e adolescentes que se desviam acentuadamente para cima ou para baixo da norma de seu grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais, ou quaisquer dessas, de forma a criar um problema essencial com referência à sua educação, desenvolvimento e ajustamento ao meio social.
Base para essa iniciativa vai encontrar novamente na Conferência do Recife (1946), quando Antipoff, em sua fala (posteriormente publicada em texto), citou Alice Descoeudres, na ocasião professora do Instituto J..J. Rousseau, de Genebra, autora de obras de psicologia e pedagogia, que em um livro sobre pedagogia especial substituiu o vocabulário “anormais” – que para Antipoff soava de maneira humilhante –, por “retardados”, introduzido anteriormente por Alfred Binet. Recomendando que a Fundação Ulysses Pernambucano eliminasse o termo “anormais”, ao se referir a seus alunos, a psicóloga foi otimista em defender: “Preferimos que escolhessem um termo neutro como seria por exemplo: Escola médico-pedagógica, ou Instituto de Educação Individual, focalizando menos a espécie de alunos a educar, que a qualidade de tratamento a que os submeterá. Haverá entre eles, presumo, não rara vez, crianças vivas e inteligentes, porém com distúrbios psico-motores, ou de linguagem ou de caráter, e que serão sanados inteiramente ou pelo menos terão melhoras sensíveis, após tratamento adequado; e não ficaria agradável nem a eles, nem aos pais, a menção da Escola de Anormais no seu curriculum escolar” (ANTIPOFF, 1946, p. 249).
Para Antipoff, o principal problema das crianças carentes e abandonadas, discriminadas, seria o sentimento de não adequação ao meio. Elas tinham, originalmente, uma natureza boa. Vale dizer que essa psicóloga teve influência das ideias de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), para quem todos nasciam bons, a sociedade que é que os corrompia. Suas principais necessidades poderiam ser sanadas com a criação de um ambiente de liberdade, permitindo-lhes que suas habilidades pudessem ser adequadamente desenvolvidas. Também influenciada pelas ideias de Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), passou a defender a importância da educação no ambiente familiar, acreditando que a escola deveria ser vista como uma extensão da vida em família, e que, após uma reformulação, o método educacional poderia ser mais efetivo quando estivesse estritamente relacionado às experiências de vida da criança.
Esses ideais a inspiraram a criar duas instituições com a intenção de dar assistência às crianças: em novembro de 1932, com a colaboração de algumas antigas alunas da Escola de Aperfeiçoamento, fundou a primeira Sociedade Pestalozzi do país, com sede na capital mineira e, anos mais tarde, a Fazenda do Rosário, em 1940, significando uma grande mudança na forma de lidar com as crianças marginalizadas.
Buscando soluções para a educação de crianças excluídas do processo de escolarização, Antipoff lutava contra a contradição entre a miséria e falta de higiene em que viviam as crianças abandonadas, moradoras de rua, segundo suas palavras, “mais imundos ainda em contraste com tanto luxo, de um lado, e de outro tanta beleza natural que Belo Horizonte apresenta. (…)Movido pelo simples sentimento de compaixão, como pela convicção mais radical, o povo de Belo Horizonte tem de se decidir a melhorar a sorte desta infância, hoje apenas miserável, amanhã, talvez, miserável, revoltada e perigosa (ANTIPOFF, 1992a, p. 122). Assim, a Sociedade Pestalozzi passou a atuar sobre diversos focos de exclusão social, provocados por problemas de miséria e abandono, deficiência mental no sentido estrito, visando resguardar os direitos das crianças em situação de risco social.
Contando com um consultório médico-pedagógico instalado em sua sede, em 1934, para crianças com deficiência ou as chamadas problemáticas, tornou-se o embrião do futuro Instituto Pestalozzi de Minas Gerais, posteriormente transformado em instituição pública do governo daquele Estado. Era o nascimento do trabalho multiprofissional, formado por médicos, psicólogos, pedagogos e assistentes sociais. Em outro trecho da Conferência por ela ministrada no Recife, em 1946, Antipoff afirmou: “Vejamos os benefícios que o tratamento da criança excepcional deficiente ou com distúrbios diversos, pari passu, pode trazer à comunidade. Precisamos argumentar bem o nosso propósito de servir à criança excepcional, porque existem pessoas que condenam a preocupação com estes seres, considerando que sua assistência é mais dispendiosa, exige um pessoal especializado com preparo pedagógico mais longo e esmerado; exige classes menos numerosas, 15 a 20 alunos no máximo, material didático rico, aparelhamento para trabalhos manuais, matéria-prima abundante para os mesmos” (p. 249).
Antipoff tornou-se professora fundadora da Cadeira de Psicologia Educacional na Universidade Minas Gerais, lecionando na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, nos cursos de Licenciatura e de Pedagogia, divulgando o pensamento de autores como Pavlov, Luria, Claparède, Rey, Piaget e Janet. No início dos anos 1940, quando o Brasil vivia o período do Estado Novo, teve ela recusada pelo governo mineiro a renovação de seu contrato como acadêmica por ser estrangeira. Visando a buscar outras formas de atuação profissional, mudou-se para o Rio de Janeiro, passando a atuar junto ao Ministério da Saúde, na institucionalização do Departamento Nacional da Criança, momento também no qual Antipoff iniciou a criação da Sociedade Pestalozzi do Brasil. Ela também tomou parte na luta pela redemocratização do país. Publicou, em 1944, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógica – RBEP”, o artigo “Como pode a escola contribuir para a formação de atitudes democráticas”3, que, segundo Campos (2003), é “um de seus trabalhos mais interessantes, tanto do ponto de vista pedagógico quanto social”. Os conceitos contidos logo nos primeiros parágrafos desse artigo continuam atuais:
A escola pública, em alguns lugares a única escola para o ciclo primário, é certamente o meio eficiente de aproximação entre futuros cidadãos da mesma geração. Dos contatos da infância, cada um retira o conhecimento intuitivo, diariamente experimentado, do valor de cada um dos companheiros; e estes, pertencentes a meios diferentes, refletem, assim, no espírito de cada qual, atitudes e modos de a gerir de seus respectivos meios.
Mas a democracia requer mais que oportunidades e contatos fortuitos entre meios sociais. Ela exige treino organizado para formar no homem adulto sua segunda natureza, tecida de atitudes e de hábitos de agir democraticamente, de acordo com um ideal democrático.
Muitos são os critérios do ideal e da ação democrática. Entre eles destacamos dois que, já na Escola Primária, podem ser visados sob a forma de virtude e praticar, e de regime de trabalho a realizar.
O nome do primeiro é lealdade; o segundo chama-se cooperação. Todo regime, onde ambas vigoram, se democratiza e se apura no sentido democrático. Ao contrário, com o desprezo de uma ou de outra, ele degenera em regime de autoritarismo e de exploração social (ANTIPOFF, 1944, p. 221).
Ainda morando na capital brasileira da época, Antipoff iniciou as reflexões sobre o ensino rural, que seria implementado na Fazenda do Rosário. Em 1951, obtendo a cidadania brasileira, pôde reassumir suas funções como catedrática de Psicologia Educacional na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, dando continuidade à formação de pessoal qualificado em psicologia.
Inquieta e ativa, voltou a buscar possibilidades de colocar em prática suas ideias na Fazenda do Rosário, tendo como foco a integração da escola à comunidade rural adjacente, enfatizando, “por um lado, a necessidade de integração à comunidade das crianças recebidas pela Sociedade Pestalozzi – crianças abandonadas, com sérios problemas de ajustamento. Por outro lado, buscava-se levar à comunidade rural de Ibirité os benefícios civilizatórios da escola” (CAMPOS, p. 27, 2002). Como frutos desses ideais, surgiriam diversas instituições educativas que vieram a compor o Complexo Educacional do Rosário: Escolas Reunidas Dom Silvério (para o ensino primário); Clube Agrícola João Pinheiro (ensino e experimentação de técnicas agrícolas); Ginásio Normal Oficial Rural Sandoval Azevedo (com internato para moças); Ginásio Normal Oficial Rural Caio Martins (com internato para rapazes); Instituto Superior de Educação Rural (Iser), com cursos de treinamento para professores rurais, incluindo a prática no cultivo de lavouras, hortas, pomares, na criação de animais, e cursos de economia doméstica (CAMPOS, 2002, p. 27). Essas iniciativas da Sociedade Pestalozzi, foram apoiadas pelo governo estadual, especialmente a partir da integração da Fazenda do Rosário à Campanha Nacional de Educação Rural, iniciada pelo governo federal em 1952.
Segundo palavras de Antipoff (1992a), “em que seus moradores, sem especificação profissional, sectária ou partidária, se transformem em cidadãos de um padrão mais apurado, do ponto de vista cívico, econômico e cultural”, cabendo aos educadores o papel social de contribuir para “edificar formas mais produtivas e mais equitativas de vida coletiva” (p. 113). A Fazenda do Rosário, denominada por ela uma “cidade rural”, tinha por objetivo o exercício da democracia na vida cotidiana. Relendo seus escritos, vemos que a psicóloga tinha firmeza e convicção que a educação das crianças assistidas nas entidades criadas e dirigidas por ela deveria mesmo ocorrer no meio rural:
Escola para excepcionais devem ser localizadas fora das cidades. O local natural é o campo. Espaço mais largos permitem movimentos mais amplos. Os ritmos da vida são ali mais regulares: o sol, melhor que, o relógio, e os sinos marcam as horas, convidando ao trabalho e ao sono.
Além da serenidade, a natureza dá margem a um elemento que julgo de sua importância na educação dos excepcionais: a beleza. É muito mais fácil deixar a criança ver o que é belo, o que é feio, do que fazê-la compreender o que é bom e o que mal. A estética do ambiente é o fundo no qual se perfilarão as ações dos adolescentes. Esses, rapidamente, eles mesmos, ou com o auxílio de educadores, procurarão a harmonia, fugindo do chocante visível e da cacofonia das discordâncias. E assim, paulatinamente, se aproximam das regras da vida social e moral (ANTIPOFF, 1955, p. 285).
Em um sentido mais técnico, Antipoff passou a usar o método da “experimentação natural” de Lazursk de maneira ampliada, para denominar a forma de organização das atividades pedagógicas no Rosário. Esse método foi desenvolvido pelo psicólogo e psiquiatra russo, Alexandre Lazursky, que segundo a própria Helena Antipoff, “consagrou sua vida ao estudo psicológico da personalidade e à pesquisa dos métodos particularmente adaptados a este assunto”. Ela publicou, em 1926, um artigo sobre esse método, hoje disponível na coletânea organizada por Regina Helena de Freitas Campos (2002, pp. 295-300).
Defendia a liberdade de escolha do educando, a atividade consciente, a sociabilidade e a tomada de decisões em grupo: “Em vez de incentivar a competição, como era o caso no sistema escolar regular, a pedagogia rosariana privilegiava a cooperação: o aprendizado deveria se fazer em um ambiente de ajuda mútua e de liberdade para experimentar. Nessa época, a autora abandonou a opção por classes seletivas, que havia defendido para as escolas públicas nos anos de 1930, e decide incentivar a reunião de crianças de variados níveis intelectuais e tipos de habilidades nas salas de aula do Rosário” (CAMPOS, 2003).
Cabe aqui uma indagação: quais os princípios e aspectos que Helena Antipoff estabelecia para uma educação integral e integrativa das crianças e jovens com as características de seus educandos? Em suas próprias palavras, escritas em 1966, quem trabalha com esse público-alvo, deve buscar sempre:
1 – Educação física e conservação da saúde, formação dos hábitos de higiene.
2 – Formação de hábitos de vida e de relativa independência (no vestir, nas refeições, na aquisição de certa autonomia, etc.).
3 – Educação perceptiva e de inteligência prática.
4 – Educação intelectual e da linguagem como meio de comunicação e formação dos conceitos.
5 – Escolarização no sentido dos estudos servirem para a aquisição de instrumentos úteis de cultura e de comunicação na sociedade. Do contrário, nos retardados não se justificam esforços excessivos e contínuas frustrações; sua energia deve ter outras aplicações, mais condizentes com os interesses e capacidades de excepcionais. Tornar este item bem patente, tanto para os pais como para os regentes de classes.
6 – Educação social, em suas várias modalidades de relações humanas: no lar, na escola, na comunidade, nos brinquedos, nas ocupações, no trabalho, recreação…
7 – Educação Econômica – para zonas rurais: estudo de aproveitamento usual dos recursos naturais e materiais; sempre que possível, com a produção de valores ou rendimentos em atividades agrícolas, artesanais, industriais, caseiras, seriadas em gradativa progressão de dificuldades e esforços, permitem a participação dos mais como dos bem-dotados.
8 – Educação artística – nos variados setores de aplicação. Tanto na vivência estética, na contemplação da natureza, como na música, dança, teatro, nas artes plásticas… despertando no excepcional sentido de beleza e exercitando aptidões, não raro de apreciável valor. O indivíduo sentir-se-á mais feliz com a utilização do patrimônio cultural que o aproxime dos demais membros da sociedade. Os critérios de beleza, precedendo os critérios éticos – constituem elementos valiosos na educação do excepcional.
9 – Educação cívica e moral – com a participação do excepcional nas manifestações da vida cívica, nas comemorações de datas de cunho familiar, regional, de acontecimentos dignos de exaltar o amor filial, o valor moral na localidade, no país, praticando “boas ações”, auxilio aos fracos, doentes, necessitados. A sensibilidade afetiva para com as alegrias, a infelicidade, o sofrimento dos outros; a bondade patente muitos excepcionais, bem como o desejo e a capacidade de serem úteis ao próximo podem ser desenvolvidos nessas criaturas limitadas intelectualmente e aproveitadas em atividades sociais de auxiliar de educadores, nos serviços hospitalares, na recepção de alunos novatos, visitas, etc.
10 – Educação religiosa – Esta, na medida da compreensão e do desejo do próprio excepcional, não pode ser descuidada. O excepcional não deverá ser deixado fora da vida religiosa da família, da escola ou da comunidade, pois seu afastamento compulsório pode criar nele o sentimento de rejeição e de inferioridade, reprimido ou pronto a se voltar contra seus pais ou educadores. (ANTIPOFF, 1966, p. 285-286)
É interessante notar que quase todas essas características apontadas por Helena Antipoff foram e ainda são fortemente enfatizadas pela Educação Especial. Afirmo isto tanto pelo meu conhecimento empírico de um ex-aluno dessa educação, que passou toda a década de 1970 e parte dos anos 1980 dentro de instituições especializadas, praticando tais atividades, quanto pela pesquisa, que encontrou tais recomendações nas centenas de livros e/ou artigos dessa área. Em livro, de minha autoria, “Vamos conversar sobre crianças deficientes” (Memnon, 1993), utilizei várias delas.
EDUCAÇÃO PARA SUPERDOTADOS
Como decorrência da experiência do Rosário, a psicóloga, em seus últimos anos de vida, passou a ter uma preocupação especial com a descoberta de talentos e a educação dos superdotados, acreditando que, “em um país como o Brasil, a precariedade das condições de vida da população pobre e a falta de um sistema educacional realmente universal tinham como conseqüência a perda de um grande contingente de indivíduos talentosos, bem-dotados, que poderiam contribuir para a comunidade, mas não o faziam por falta de orientação” (CAMPOS, 2003). Antipoff (1992b), em um de seus escritos, chegou a indagar: “Talento e inteligência não são de geração espontânea, mas precedidos de longo trabalho de gerações: quem será pintor num meio rural, onde a criança nem mesmo tem o direito de usar o lápis de cor?” (p. 402). Em outro texto, de 1971, ao mesmo tempo otimista e preocupante com o futuro dessas crianças e jovens, Antipoff escreveu:
De uma orientação, de um equipamento harmonioso de sua personalidade depende venham eles a ser os futuros líderes positivos das grandes transformações técnicas, científicas, sociais e morais que se estenderão pelo fim do século e atingirão o ano 2000. hoje, mais do que nunca, temos que descobrir os indivíduos bem-dotados desde a primeira infância, para que possamos leva-los a uma educação adequada, em que sejam tratados como pessoas, sem o perigo de serem considerados minigênios e, em consequência, expostos à admiração de parentes, amigos, colegas e autoridades, o que os faz se sentirem, cada um, como uma avis rara, colocando-os geralmente em posição esquiva, de defesa ou de agressividade, quando não em atitudes exagerada concentração interior, buscando o isolamento social.
Bem-educados intelectual, técnica, social, moral e espiritualmente, os grupos de bem-dotados constituir-se-ão em força positiva do progresso, de uma filosofia, inevitável nas mudanças da civilização, criando condições de vida e não de morte, de alegria e não de lágrima, de amor e não de ódio.
Se isso não acontecer, os bem-dotados serão ou permanecerão como joguetes de espertalhões, de egoístas, de exploradores da sociedade em benefício próprio, atuando com as forças do mal, sem qualquer proveito material ou moral para a humanidade (p. 257).
Fruto dessa nova iniciativa, surgiria em 1972, a Associação Milton Campos para o Desenvolvimento de Vocações (ADAV), visando à descoberta e incentivo ao talento e à criatividade. Em 1974, como uma última homenagem em vida pelos serviços prestados à educação no Brasil, Helena Antipoff recebeu o prêmio Boilesen. E os recursos provenientes dele foram aplicados na criação da ADAV, passando a atender crianças oriundas de escolas públicas da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Aos finais de semana, em regime de internato ou semi-internato, essa clientela passou a contar com um programa intensivo de desenvolvimento da criatividade e do talento.
Defendendo como lema “tudo que se fizer em favor da criança excepcional reverterá em benefício da massa de crianças comuns e do bem-estar da comunidade”, Helena Antipoff foi firme, ao escrever em 1966, que “O projeto da Fazenda do Rosário com relação à colocação de deficientes mentais nos lares rurais tem duplo objetivo: a educação da criança e sua integração na comunidade, de um lado; do outro, a orientação da família rural e sua progressiva civilização dentro do ambiente mais higiênico, mais próspero, econômica e socialmente” (p. 290).
NOTA:
As crianças intituladas por Pernambucano de supernormais, depois por Helena Antipoff de bem-dotadas e superdotadas, não têm hoje uma denominação aceita incondicionalmente; alguns autores têm-se referido a pessoas com altas habilidades. Por ter sido deles a iniciativa de atenção com essas pessoas, elas foram incorporadas à disciplina “Psicologia do Excepcional”. Particularmente, defendo que o tema superdotação seja retirado das referidas disciplinas e transferidas para as “Psicologias da Aprendizagem” ou correlatas, por ser tratar de pessoas com necessidades de planejamentos educacionais elaborados especialmente para atingirem suas potencialidades e expectativas, e não propriamente uma necessidade de Educação Especial ou de Inclusão Escolar.
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