Deise Tomazin e Emílio Figueira, parceiros desde 1972 |
O ALTO MURO DA ESCOLA
Ao nascer com paralisia cerebral em 1969, Emílio Figueira
conheceu como ninguém a exclusão social, passando seus primeiros anos dentro de
uma instituição, como paciente e aluno semi-interno na Associação de
Assistência à Criança Defeituosa (termo da época), a AACD-Ibirapuera. Foram
nove anos de sua infância, todos em terapias e salas de aulas. Em sua
autobiografia “O Caso do Tipógrafo”, Emílio recorda-se:
Depois, Emílio, aos 11 anos, partiu para viver em Guaraçaí, uma pequena cidade do interior paulista. Ao ser totalmente incluído educacional e socialmente, fez a diferença. Dois polos que influenciam toda a sua vida e carreira.
O INÍCIO DA MILITÂNCIA
Em meados da década 1980, adolescente, ele tomou consciência
de sua própria deficiência. Paralelo as primeiras mal traçadas linhas como
aspirante a escritor, poeta e estagiário como repórter na Folha de Guaraçaí,
Emílio começou a escrever seus textos sobre a temática, a ler artigos e livros
sobre esse universo e realizar suas tímidas pesquisas sobre integração social.
O Brasil daquele período vivia intensamente o Movimento
Político desse grupo, inspirados pelo “Ano Internacional da Pessoa Deficiente –
1981”. Mas por estar no interior, longe de todas as capitais, Emílio Figueira
travava o início do que seria uma caminhada reservada. Uma característica que
ele traz desde sua infância até os dias atuais, o gosto pelo trabalho solitário
em sua mesa em um canto de seu quarto. Mesa essa que sempre manteve
intensamente uma grande e diversificada produção.
Na década seguinte, anos 1990, Figueira se mudou para Bauru,
cidade de grande porte. Ali, ainda na máquina de escrever, datilografando com
um único dedo, ele começou a redigir artigos e textos de opinião sobre todas as
questões que envolviam pessoas com deficiência. Esses textos eram enviados
espontaneamente para muitos jornais e revistas, sendo em sua grande maioria
publicados.
Período também em que Emílio Figueira foi colaborador das
primeiras publicações brasileiras voltadas exclusivamente ao assunto, o jornal
carioca “Desafio de Hoje“ e da revista paulista “Integração”, ambos já
extintos. Dali, esse autor definiria qual seria sua principal atividade pelas
décadas seguintes: ser um divulgador das informações e novidades que envolvem
as pessoas com deficiência.
Emílio trocava muitas correspondências com pessoas do
Movimento e pesquisadores da área. Foi de onde veio a sua primeira grande
influência, ao conhecer o antropólogo João Baptista Cintra Ribas, o qual o
orientou amigavelmente por muitos trabalhos.
Em seguida, Figueira conheceria uma influência ainda maior,
o assistente social Romeu Kazumi Sassaki que, antenado com tudo o que acontecia
lá fora, traduzia e trazia para o Brasil todas as tendências e conceitos revolucionários
referentes às pessoas com deficiência.
Nesse período, Emílio, já como pesquisador-bolsista do
Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Anomalias Crânio-Faciais
(Centrinho-USP/Bauru), realizou sua primeira grande linha de pesquisa
intitulada “Deficiência e Comunicação Social”. Nela, Figueira defendia a
importância da normalização da imagem dessas pessoas nos meios de comunicação
de massa, assim como a necessidade de surgirem mais publicações alternativas,
focando todo o universo que as envolviam. Para o pesquisador, quanto mais
informações veiculadas de forma correta, mais naturalmente ocorreria a inclusão
em todos os níveis.
Em sete anos que Emílio Figueira permaneceu no Centrinho,
produziu seis monografias de especializações, inclusive sobre a imagem das
pessoas com deficiência na literatura infantojuvenil e publicou mais de trinta
artigos científicos no Brasil e exterior.
Surgiu a internet, permitindo ao Emílio ampliar
consideravelmente o alcance desse jornalismo especializado, escrevendo colunas para
diversos blogs de comunicação de massa, exemplo a Globo.com, além dele mesmo
criar sites e blogs temáticos. E, com o advento do computador e estudando
computação gráfica, Figueira ajudou entidades a criarem publicações
alternativas.
Iniciaria sua segunda linha de pesquisa, estudando o que
intitulou de “Arte e Deficiência”, sobretudo dentro da história da arte, o que
lhe rendeu novos artigos publicados em revistas especializadas e livros.
E de suas participações em projetos artísticos, o mais significante
foi como ator de “Olhos de Dentro”, grupo teatral inclusivo que mescla pessoas
com e sem deficiências há duas décadas, tendo à frente a atriz e diretora Nina
Mancin, esta narradora que vos fala!
E dentre outras participações artísticas, Emílio Figueira
participou de três exposições fotográficas sobre crianças com deficiência,
escrevendo textos que acompanhavam as fotos de sua amiga, a fotógrafa Giselle
Bohnen.
Ainda na segunda metade dos anos 1990, o professor Romeu
Sassaki apresentou-lhe ao conceito de Inclusão. A produção intelectual de
Emílio Figueira voltada às questões das pessoas com deficiência passou a ser
toda pautada por ela a partir dali.
Ao resolver cursar psicologia, Emílio abriria horizontes
para novas linhas de pesquisas. Ainda na faculdade, estudava e escrevia sobre o
que ele chamava de “Arte e Loucura” e de como o fazer artístico poderia ajudar
na saúde mental. Estudo que lhe rendeu vários artigos e dois livros.
O importante mesmo, foi que, motivado pela memória da
psicóloga uspiana Lígia Assupção Amaral, sua amiga da época da Revista
Integração e que havia falecido na mesma semana em que ele prestou o
vestibular, Figueira começou a estudar as relações entre psicologia e pessoas
com deficiência, produzindo mais de cem textos, quatro livros. Linha de
pesquisa que ele mantém até os dias atuais.
Foi a partir de seu mestrado em Educação Inclusiva que
Emílio iniciou sua grande jornada, escrevendo vários textos de apoios
didáticos, treinamentos. Viajou para várias partes do país para palestras, onde
devido a sua dificuldade de dicção por causa da paralisia cerebral, montava
suas apresentações em vídeo e se fazia ser entendido.
Teve cursos online em sites educacionais, além de montar os
seus. Exemplo, foi um curso de Educação Inclusiva premiado pelo Memorial da Inclusão,
que Emílio ofereceu por três anos gratuitamente e ajudou a treinar mais de 23
mil educadores no Brasil e exterior. Principalmente nas regiões norte e
nordeste, onde sua obra e/ou história de vida tem sido referencial teórico para
vários trabalhos e dissertações acadêmicas.
Fazendo inúmeros cursos e formações, Emílio sempre aplicou
esses conhecimentos ao mundo das pessoas com deficiência. Outra grande
influência em suas pesquisas e escritas, foi a obra “A Epopeia Ignorada” de Otto
Marques da Silva, pioneiro brasileiro em reabilitação profissional e seu amigo
desde os anos 1980. Dentre outros exemplos dessa influência, foi o seu segundo
doutorado que, no campo da teologia, focou a história do caminhar da pessoa com
deficiência desde o início da Bíblia e ao longo de todo o cristianismo.
E dentre suas obras, o livro “Caminhando em Silêncio”, que
em sua quarta edição passou a se chamar “As pessoas com deficiência na história
do Brasil – Uma Trajetória de Silêncios e Gritos”, é considerado por ele seu
feito mais importante na área da inclusão.
Emílio Figueira sempre foi um curioso em aprender e a
produzir intensamente. Edita seus próprios livros, o que lhe permite colocar
grande parte de suas obras no campo da inclusão gratuitamente na internet. Como
também cria todos seus sites e conteúdos. Dentro de suas possibilidades, atende
a todos os pedidos de ajuda, seja virtual ou pessoal, gentilmente. Em sua
caminhada e produção referentes às questões das pessoas com deficiência,
raramente se importou em ser remunerado, atuando por ideologia, como se fosse
um sacerdócio, uma missão que recebera ao vir para este mundo.
Exemplo é seu site gratuito “Acervo Inclusivo”, espaço
digital que reúne a produção desse autor e cientista desde os anos 1980. Perto
de 700 textos, vídeos, livros digitais gratuitos, reportagens e matérias de
época, artigos, colunas publicadas em vários veículos de comunicação
alternativos e de massa. Dezenas de separatas de seus artigos científico,
material sobre psicologia e pessoas com deficiência, teorias e práticas
pedagógicas em Educação Inclusiva.
“Sei que algumas coisas que faço, produzo ou escrevo podem
apresentar erros. Só que, o feito é melhor que o perfeito escondido em uma
gaveta. Sempre estarei em busca de resultados e não de reconhecimentos
acadêmicos ou eruditos. E com os meus passos dentro das minhas possibilidades,
com meus erros e acertos, continuarei fazendo a minha parte para uma Escola e
uma Sociedade inclusiva!”. Diz ele.
Sua abordagem humanística está presente não somente nessa
área, como em seus escritos literários, peças teatrais e produções audiovisuais.
O que o levou recentemente a concorrer e ser eleito à cadeira 39 da tradicional
Academia Paulista de Letras.
Acreditando em um mundo melhor e igualitário. Como por
exemplo, baseado em suas experiências pessoais, defende em seus escritos e palestras
a Educação Inclusiva realizada pela afetividade:
“Incluir não tem segredo. Basta receber um aluno, seja ele
quem for. Acolher com amor, ter a sensibilidade de perceber e pesquisar o que
ele realmente precisa de apoio para se desenvolver em todos os sentidos. Um bom
professor precisa ser um suporte seguro que lança seus alunos rumo às infinitas
possibilidades”.
Figueira, por trabalhar na solidão de sua mesa, passa
despercebido do cenário inclusivo nacional, assim como os fundamentais
pioneiros, muitos com os quais Emílio conviveu e foi influenciado e hoje
“repousam” serenos pelas paredes do Memorial da Inclusão aqui em São Paulo.
Mesmo não tendo como mensurar, podemos imaginar que o
trabalho individual de Emílio Figueira, foi se amplificando ao longo de quatro
décadas. Por ser um cientista que escreve na linguagem simplificada de um
jornalista, quantas e quantas pessoas foram e ainda são influenciadas pelos
seus escritos impressos e digitais.
Na área de Educação Inclusiva, sua produção didática,
palestras, cursos online, permitem conhecimento e mudanças de mentalidades a
milhares de professores, possibilitando a tantas crianças a serem incluídas
nesses últimos anos.
Tudo é o legado discreto de uma pessoa que superou sua própria deficiência, leva conhecimento desmistificando preconceitos, abre caminhos para seus pares em várias frentes sociais e colabora para uma Escola e sociedade realmente para todos, silenciosamente em seu quarto, digitando com um só dedo!