O LEGADO PESSOAL, CIENTÍFICO E PEDAGÓGICO DE EMÍLIO FIGUEIRA À INCLUSÃO BRASILEIRA!

Por DEISE TOMAZIN BARBOSA – Licenciada em Matemática e Pedagogia, especialista em Tecnologias Assistivas e Deficiências e mestre em Deficiências e Psicanálise. Gestora no Departamento Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo


Deise Tomazin e Emílio Figueira, parceiros desde 1972


O ALTO MURO DA ESCOLA

Ao nascer com paralisia cerebral em 1969, Emílio Figueira conheceu como ninguém a exclusão social, passando seus primeiros anos dentro de uma instituição, como paciente e aluno semi-interno na Associação de Assistência à Criança Defeituosa (termo da época), a AACD-Ibirapuera. Foram nove anos de sua infância, todos em terapias e salas de aulas. Em sua autobiografia “O Caso do Tipógrafo”, Emílio recorda-se:

 “Vivíamos uma época que os estudos e técnicas de tratamentos ainda engatinhavam. Como aluno semi-interno na AACD, por cinco anos usei aparelhos em quase todo o corpo para ele “endurecer”. Pesadas pulseiras de chumbo nos braços para “diminuir” os movimentos involuntários. Uma colher torta e com cabo engrossado de madeira, eu usava o aparador em volta do prato e um suporte de madeira grudado à mesa, que tinha o encaixe do prato, da caneca e pote de sobremesa. Lembro-me de seminários com enormes plateias, onde, crianças, éramos colocados só de cueca no palco, o especialista ia nos mostrando e analisando o caso. Assim fiz parte de muitos outros experimentos e pesquisas no início dos anos 1970. E, ao mesmo tempo que essa reabilitação foi importante para construir minha autonomia, orgulho-me por ter colaborado com esses experimentos”.

Depois, Emílio, aos 11 anos, partiu para viver em Guaraçaí, uma pequena cidade do interior paulista. Ao ser totalmente incluído educacional e socialmente, fez a diferença. Dois polos que influenciam toda a sua vida e carreira.

O INÍCIO DA MILITÂNCIA

Em meados da década 1980, adolescente, ele tomou consciência de sua própria deficiência. Paralelo as primeiras mal traçadas linhas como aspirante a escritor, poeta e estagiário como repórter na Folha de Guaraçaí, Emílio começou a escrever seus textos sobre a temática, a ler artigos e livros sobre esse universo e realizar suas tímidas pesquisas sobre integração social.

O Brasil daquele período vivia intensamente o Movimento Político desse grupo, inspirados pelo “Ano Internacional da Pessoa Deficiente – 1981”. Mas por estar no interior, longe de todas as capitais, Emílio Figueira travava o início do que seria uma caminhada reservada. Uma característica que ele traz desde sua infância até os dias atuais, o gosto pelo trabalho solitário em sua mesa em um canto de seu quarto. Mesa essa que sempre manteve intensamente uma grande e diversificada produção.

Na década seguinte, anos 1990, Figueira se mudou para Bauru, cidade de grande porte. Ali, ainda na máquina de escrever, datilografando com um único dedo, ele começou a redigir artigos e textos de opinião sobre todas as questões que envolviam pessoas com deficiência. Esses textos eram enviados espontaneamente para muitos jornais e revistas, sendo em sua grande maioria publicados.

Período também em que Emílio Figueira foi colaborador das primeiras publicações brasileiras voltadas exclusivamente ao assunto, o jornal carioca “Desafio de Hoje“ e da revista paulista “Integração”, ambos já extintos. Dali, esse autor definiria qual seria sua principal atividade pelas décadas seguintes: ser um divulgador das informações e novidades que envolvem as pessoas com deficiência.

 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E COMUNICAÇÃO SOCIAL

Emílio trocava muitas correspondências com pessoas do Movimento e pesquisadores da área. Foi de onde veio a sua primeira grande influência, ao conhecer o antropólogo João Baptista Cintra Ribas, o qual o orientou amigavelmente por muitos trabalhos.

Em seguida, Figueira conheceria uma influência ainda maior, o assistente social Romeu Kazumi Sassaki que, antenado com tudo o que acontecia lá fora, traduzia e trazia para o Brasil todas as tendências e conceitos revolucionários referentes às pessoas com deficiência.

Nesse período, Emílio, já como pesquisador-bolsista do Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Anomalias Crânio-Faciais (Centrinho-USP/Bauru), realizou sua primeira grande linha de pesquisa intitulada “Deficiência e Comunicação Social”. Nela, Figueira defendia a importância da normalização da imagem dessas pessoas nos meios de comunicação de massa, assim como a necessidade de surgirem mais publicações alternativas, focando todo o universo que as envolviam. Para o pesquisador, quanto mais informações veiculadas de forma correta, mais naturalmente ocorreria a inclusão em todos os níveis.

Em sete anos que Emílio Figueira permaneceu no Centrinho, produziu seis monografias de especializações, inclusive sobre a imagem das pessoas com deficiência na literatura infantojuvenil e publicou mais de trinta artigos científicos no Brasil e exterior.

Surgiu a internet, permitindo ao Emílio ampliar consideravelmente o alcance desse jornalismo especializado, escrevendo colunas para diversos blogs de comunicação de massa, exemplo a Globo.com, além dele mesmo criar sites e blogs temáticos. E, com o advento do computador e estudando computação gráfica, Figueira ajudou entidades a criarem publicações alternativas.

Iniciaria sua segunda linha de pesquisa, estudando o que intitulou de “Arte e Deficiência”, sobretudo dentro da história da arte, o que lhe rendeu novos artigos publicados em revistas especializadas e livros.

E de suas participações em projetos artísticos, o mais significante foi como ator de “Olhos de Dentro”, grupo teatral inclusivo que mescla pessoas com e sem deficiências há duas décadas, tendo à frente a atriz e diretora Nina Mancin, esta narradora que vos fala!

E dentre outras participações artísticas, Emílio Figueira participou de três exposições fotográficas sobre crianças com deficiência, escrevendo textos que acompanhavam as fotos de sua amiga, a fotógrafa Giselle Bohnen.

  O CONCEITO DE INCLUSÃO E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Ainda na segunda metade dos anos 1990, o professor Romeu Sassaki apresentou-lhe ao conceito de Inclusão. A produção intelectual de Emílio Figueira voltada às questões das pessoas com deficiência passou a ser toda pautada por ela a partir dali.

Ao resolver cursar psicologia, Emílio abriria horizontes para novas linhas de pesquisas. Ainda na faculdade, estudava e escrevia sobre o que ele chamava de “Arte e Loucura” e de como o fazer artístico poderia ajudar na saúde mental. Estudo que lhe rendeu vários artigos e dois livros.

O importante mesmo, foi que, motivado pela memória da psicóloga uspiana Lígia Assupção Amaral, sua amiga da época da Revista Integração e que havia falecido na mesma semana em que ele prestou o vestibular, Figueira começou a estudar as relações entre psicologia e pessoas com deficiência, produzindo mais de cem textos, quatro livros. Linha de pesquisa que ele mantém até os dias atuais.

Foi a partir de seu mestrado em Educação Inclusiva que Emílio iniciou sua grande jornada, escrevendo vários textos de apoios didáticos, treinamentos. Viajou para várias partes do país para palestras, onde devido a sua dificuldade de dicção por causa da paralisia cerebral, montava suas apresentações em vídeo e se fazia ser entendido.

Teve cursos online em sites educacionais, além de montar os seus. Exemplo, foi um curso de Educação Inclusiva premiado pelo Memorial da Inclusão, que Emílio ofereceu por três anos gratuitamente e ajudou a treinar mais de 23 mil educadores no Brasil e exterior. Principalmente nas regiões norte e nordeste, onde sua obra e/ou história de vida tem sido referencial teórico para vários trabalhos e dissertações acadêmicas.

Fazendo inúmeros cursos e formações, Emílio sempre aplicou esses conhecimentos ao mundo das pessoas com deficiência. Outra grande influência em suas pesquisas e escritas, foi a obra “A Epopeia Ignorada” de Otto Marques da Silva, pioneiro brasileiro em reabilitação profissional e seu amigo desde os anos 1980. Dentre outros exemplos dessa influência, foi o seu segundo doutorado que, no campo da teologia, focou a história do caminhar da pessoa com deficiência desde o início da Bíblia e ao longo de todo o cristianismo.

E dentre suas obras, o livro “Caminhando em Silêncio”, que em sua quarta edição passou a se chamar “As pessoas com deficiência na história do Brasil – Uma Trajetória de Silêncios e Gritos”, é considerado por ele seu feito mais importante na área da inclusão.

 O HUMANISTA EM SEU QUARTO SOLITÁRIO

Emílio Figueira sempre foi um curioso em aprender e a produzir intensamente. Edita seus próprios livros, o que lhe permite colocar grande parte de suas obras no campo da inclusão gratuitamente na internet. Como também cria todos seus sites e conteúdos. Dentro de suas possibilidades, atende a todos os pedidos de ajuda, seja virtual ou pessoal, gentilmente. Em sua caminhada e produção referentes às questões das pessoas com deficiência, raramente se importou em ser remunerado, atuando por ideologia, como se fosse um sacerdócio, uma missão que recebera ao vir para este mundo.

Exemplo é seu site gratuito “Acervo Inclusivo”, espaço digital que reúne a produção desse autor e cientista desde os anos 1980. Perto de 700 textos, vídeos, livros digitais gratuitos, reportagens e matérias de época, artigos, colunas publicadas em vários veículos de comunicação alternativos e de massa. Dezenas de separatas de seus artigos científico, material sobre psicologia e pessoas com deficiência, teorias e práticas pedagógicas em Educação Inclusiva.

“Sei que algumas coisas que faço, produzo ou escrevo podem apresentar erros. Só que, o feito é melhor que o perfeito escondido em uma gaveta. Sempre estarei em busca de resultados e não de reconhecimentos acadêmicos ou eruditos. E com os meus passos dentro das minhas possibilidades, com meus erros e acertos, continuarei fazendo a minha parte para uma Escola e uma Sociedade inclusiva!”. Diz ele.

Sua abordagem humanística está presente não somente nessa área, como em seus escritos literários, peças teatrais e produções audiovisuais. O que o levou recentemente a concorrer e ser eleito à cadeira 39 da tradicional Academia Paulista de Letras.

Acreditando em um mundo melhor e igualitário. Como por exemplo, baseado em suas experiências pessoais, defende em seus escritos e palestras a Educação Inclusiva realizada pela afetividade:

“Incluir não tem segredo. Basta receber um aluno, seja ele quem for. Acolher com amor, ter a sensibilidade de perceber e pesquisar o que ele realmente precisa de apoio para se desenvolver em todos os sentidos. Um bom professor precisa ser um suporte seguro que lança seus alunos rumo às infinitas possibilidades”.

Figueira, por trabalhar na solidão de sua mesa, passa despercebido do cenário inclusivo nacional, assim como os fundamentais pioneiros, muitos com os quais Emílio conviveu e foi influenciado e hoje “repousam” serenos pelas paredes do Memorial da Inclusão aqui em São Paulo.

Mesmo não tendo como mensurar, podemos imaginar que o trabalho individual de Emílio Figueira, foi se amplificando ao longo de quatro décadas. Por ser um cientista que escreve na linguagem simplificada de um jornalista, quantas e quantas pessoas foram e ainda são influenciadas pelos seus escritos impressos e digitais.

Na área de Educação Inclusiva, sua produção didática, palestras, cursos online, permitem conhecimento e mudanças de mentalidades a milhares de professores, possibilitando a tantas crianças a serem incluídas nesses últimos anos.

Tudo é o legado discreto de uma pessoa que superou sua própria deficiência, leva conhecimento desmistificando preconceitos, abre caminhos para seus pares em várias frentes sociais e colabora para uma Escola e sociedade realmente para todos, silenciosamente em seu quarto, digitando com um só dedo!

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