“Alguns médicos chegaram a dizer que eu nem seria alfabetizado e hoje tenho uma carreira literária”, conta Emílio Figueira

 


Depoimento publicado na Revista Conexão Literária em 12/06/2021

Quando fiquei com paralisia cerebral durante o meu parto
no final dos anos 1960, com sérios danos na fala e na coordenação motora, para
grande parte das pessoas que me conheciam e para minha família eu já estava com
o meu destino traçado. Ser dependente das outras pessoas, isolado dentro das
instituições. Ainda mais naquela época onde nós, pessoas com deficiência,
vivíamos totalmente excluídos da sociedade.



Como conto no livro “O Caso do Tipógrafo – Crônicas das
minhas memórias”, vivíamos uma época que os estudos e técnicas de tratamentos
ainda engatinhavam. Por cinco anos usei aparelhos em quase todo o corpo para
ele endurecer. Pesadas pulseiras de chumbo nos braços para “diminuir” os
movimentos involuntários. Lembro-me de seminários com enormes plateias, onde,
crianças, éramos colocados só de cueca no palco, o especialista ia nos
mostrando e analisando o caso. Assim fiz parte de muitos outros experimentos e
pesquisas no início dos anos 1970.



Alguns médicos chegaram a dizer que eu nem seria
alfabetizado. Só que meus pais não acreditaram nisso, ensinando-me a ler e
escrever aos cinco anos de idade. E, ao descobrir o mundo das letras, se minha
vida fosse uma fábula, eu começaria assim: Era uma vez um menino que, aos cinco
anos, já escrevia seus primeiros textos e dizia que seria um escritor.



Após onze anos de intensos tratamentos e isolamento
social, fui morar com meus avós em uma pequena cidade interiorana, sendo
incluído em uma escola comum e fazendo muitos amigos. Nesse período eu
realmente me desenvolvi em todos os sentidos. Já escrevia muitos textos e
poesias. O pequeno jornal dessa cidade passou a publicar meus escritos. E nessa
tipografia, enquanto aprendiz aos treze anos, descobri a paixão pelo
jornalismo. Ao mesmo tempo fui alimentando este pensamento: Se eu não lutasse
pelos meus objetivos de vida, ninguém iria lutar por mim!



No final dos anos 1980, ao deixar essa
cidade e ir morar em outra bem maior, eu estava sem rumo. Fui acompanhado de um
saudoso tio procurar uma renomada instituição nacional que visava
profissionalizar pessoas com deficiência e encaminhá-las ao mercado de
trabalho. Passei por algumas entrevistas até chegar à psicóloga. À certa
altura, ela me perguntou o que eu gostaria de fazer. Expliquei-lhe que era um
jornalista e desejava dar continuidade a isso. Ela me disse secamente: “Você
precisa tomar consciência que é um deficiente e por isto não pode ser um
jornalista!
” Eu simplesmente desejei-lhe um bom dia, levantei-me e nunca
mais voltei lá.



Fui crescendo profissionalmente, estudando e escrevendo
cada vez mais. Publicando minhas criações em jornais e revistas, lançando os
primeiros livros, sempre lendo e fazendo muitos cursos para um dia ser um
escritor.  Anos mais tarde, integrado em
algumas rodas literárias, comecei a participar das reuniões de criação da
Academia Bauruense de Letras daquela cidade. O projeto vingou e a fundação foi
marcada em um luxuoso Tênis Club. Dias antes, uma pessoa da comissão telefonou
em minha casa para comunicar que não permitiria que eu tomasse posse no dia da
inauguração, chegando a dizer: “Não ficará bem para a ABL ter um deficiente
em uma cerimônia tão solene!”.



Em minha caminhada, já vivi muitos momentos de
preconceitos, discriminatórios, os chamados bullying e muitos obstáculos
sociais e atitudinais tive que superar. Marcaram-me só nos instantes que
ocorreram. Nunca os deixei me abater por eles, pois sempre tive tantas coisas
positivas para buscar, que aprendi a não perder o meu tempo com babacas.



Hoje muitas pessoas se espantam ao saberem que, mesmo com
paralisia cerebral, tenho três graduações, cinco pós-graduações e dois
doutorados. Tenho 90 livros editados, 98 artigos científicos publicados. E,
enquanto jornalista, já publiquei mais de 500 textos. Grande parte voltados às
questões humanitárias! E como tenho mania de arquivista, estão todos
organizados e datados em pastas, guardados com muito orgulho. Sou conferencista
de pós-graduação, tenho vários cursos gratuitos online que monto e ofereço
gratuitamente, atingindo já mais de 30 mil pessoas. Viajo sozinho todo o Brasil
fazendo palestras, o que é uma grande superação, pois me viro em aeroporto e
hotéis sem apoio daquelas pessoas que sempre estão em minha volta. Digo que
grande são as pessoas que, conscientes de suas limitações, tornam-se infinitas
suas possibilidades!



O tempo passou e fui construindo minha identidade e lugar
no mundo a partir da exclusão... Agora em julho completo 39 anos de jornalismo.
Na época que procurei àquela instituição, eu nem imaginava que dose anos
depois, eu ingressaria em uma faculdade de psicologia, faria mestrado,
doutorado e escreveria muitos artigos e livros na área. Não me tornei membro
daquela Academia. Mas venho construindo uma carreira literária já com vários
títulos publicados e muitos planos e ideias que eu ainda quero concretizar.



Àquela psicóloga que nem de longe representa o pensamento
de nossa categoria, pediu-me para ter consciência que eu era um “deficiente”.
Porém, ao longo da minha existência, preferi ter a consciência que, como
qualquer pessoa que sonha e vai buscar seus objetivos, sou totalmente capaz! O
importante é que aquele menino limitado por sua paralisia cerebral,
alfabetizado aos cinco anos e que queria ser escritor, nunca deixou de sonhar!

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