Relato GQ/Globo.com: “Mesmo com paralisia cerebral, tenho três graduações, cinco pós-graduações e dois doutorados”, diz Emílio Figueira







O escritor paulista, que acaba de lançar a autobiografia "O Caso do Tipógrafo", é um dos nomes que luta por inclusão: “Grandes são as pessoas que, conscientes de suas limitações, tornam infinitas suas possibilidades!", ele afirma




ADEMIR CORREA (@ADEMIRCORREA)

25 JUN 2020 - Fonte: GQ - Globo.com



Quando fiquei com paralisia cerebral
durante o meu parto no final dos anos 1960, com sérios danos na fala e na
coordenação motora, para grande parte das pessoas que me conheciam e para minha
família eu já estava com o meu destino traçado. Ser dependente das outras
pessoas, isolado dentro das instituições. Ainda mais naquela época onde nós,
pessoas com deficiência, vivíamos totalmente excluídos da sociedade. Como conto
no meu recém lançado livro “O Caso do Tipógrafo – Crônicas das minhas
memórias”
, vivíamos uma época que os estudos e técnicas de tratamentos ainda
engatinhavam. Por cinco anos usei aparelhos em quase todo o corpo para ele
endurecer. Pesadas pulseiras de chumbo nos braços para “diminuir” os movimentos
involuntários. Lembro-me de seminários com enormes plateias, onde, crianças,
éramos colocados só de cueca no palco, o especialista ia nos mostrando e
analisando o caso. Assim fiz parte de muitos outros experimentos e pesquisas no
início dos anos 1970.








Alguns médicos chegaram a dizer que
eu nem seria alfabetizado. Só que meus pais não acreditaram nisso, ensinando-me
a ler e escrever aos cinco anos de idade. E, ao descobrir o mundo das letras,
se minha vida fosse uma fábula, eu começaria assim: Era uma vez um menino que,
aos cinco anos, já escrevia seus primeiros textos e dizia que seria um
escritor.


Após onze anos de intensos
tratamentos e isolamento social, fui morar com meus avós em uma pequena cidade interiorana,
sendo incluído em uma escola comum e fazendo muitos amigos. Nesse período eu
realmente me desenvolvi em todos os sentidos. Já escrevia muitos textos e
poesias. O pequeno jornal dessa cidade passou a publicar meus escritos. E nessa
tipografia, enquanto aprendiz aos treze anos, descobri a paixão pelo
jornalismo. Ao mesmo tempo fui alimentando este pensamento: Se eu não lutasse
pelos meus objetivos de vida, ninguém iria lutar por mim!







No final dos anos
1980, ao deixar essa cidade e ir morar em outra bem maior, eu estava sem rumo.
Fui acompanhado de um saudoso tio procurar uma renomada instituição nacional
que visava profissionalizar pessoas com deficiência e encaminhá-las ao mercado
de trabalho. Passei por algumas entrevistas até chegar à psicóloga. Ela começou
me criticando duramente por não andar sozinho pela cidade, mas eu tinha acabado
de sair de uma cidade com seis mil para viver em outra com trezentos e vinte
mil habitantes. Tudo ainda era muito novo e assustador para mim. À certa
altura, ela me perguntou o que eu gostaria de fazer. Expliquei-lhe que era um
jornalista e desejava dar continuidade a isso. Ela me disse secamente: “Você
precisa tomar consciência que é um deficiente e por isto não pode ser um
jornalista!
” Eu simplesmente desejei-lhe um bom dia, levantei-me e nunca
mais voltei lá.




Fui crescendo profissionalmente,
estudando e escrevendo cada vez mais. Publicando minhas criações em jornais e
revistas, lançando os primeiros livros, sempre lendo e fazendo muitos cursos
para um dia ser um escritor.  Anos mais
tarde, integrado em algumas rodas literárias, comecei a participar das reuniões
de criação da Academia de Letras daquela cidade. O projeto vingou e a fundação
foi marcada em um luxuoso Tênis Club. Dias antes, uma pessoa da comissão
telefonou em minha casa para comunicar que não permitiria que eu tomasse posse
no dia da inauguração, chegando a dizer: “Não ficará bem para a ABL ter um
deficiente em uma cerimônia tão solene!”.


Em minha caminhada, já vivi muitos
momentos de preconceitos, discriminatórios, os chamados bullying e muitos
obstáculos sociais e atitudinais tive que superar. Marcaram-me só nos instantes
que ocorreram. Nunca os deixei me abater por eles, pois sempre tive tantas
coisas positivas para buscar, que aprendi a não perder o meu tempo com babacas.


Hoje muitas pessoas se espantam ao
saberem que, mesmo com paralisia cerebral, tenho três graduações, cinco
pós-graduações e dois doutorados. Tenho mais de 80 livros editados, 98 artigos
científicos publicados. E, enquanto jornalista, já publiquei mais de 500
textos. Grande parte voltados às questões humanitárias! E como tenho mania de
arquivista, estão todos organizados e datados em pastas, guardados com muito
orgulho. Sou conferencista de pós-graduação, tenho vários cursos gratuitos
online que monto e ofereço gratuitamente, atingindo já mais de 30 mil pessoas.
Viajo sozinho todo o Brasil fazendo palestras, o que é uma grande superação,
pois me viro em aeroporto e hotéis sem apoio daquelas pessoas que sempre estão
em minha volta.


Digo que grande são as pessoas que,
conscientes de suas limitações, tornam-se infinitas suas possibilidades! Nas
dificuldades, nunca deixo de pedir ajuda quando necessito. Diante de qualquer
limitação que aparece por causa da minha deficiência, não exclamo que “não vou
conseguir”, mas digo “eu vou tentar”! Gosto de fazer “pirraça” para os meus
pensamentos limitantes... Sempre que eles dizem que não sou capaz de fazer
algo, vou lá e faço, mesmo que não seja exatamente como as demais pessoas, mas
faço do meu jeito. Sempre estarei em busca de resultados para ajudar as pessoas
e não de reconhecimentos para o meu ego!


O tempo passou e fui construindo
minha identidade lugar no mundo a partir da exclusão... Agora em julho completo
38 anos de jornalismo. Na época que procurei àquela instituição, eu nem
imaginava que dose anos depois, eu ingressaria em uma faculdade de psicologia,
faria mestrado, doutorado e escreveria muitos artigos e livros na área. Não me
tornei membro daquela Academia. Mas venho construindo uma carreira literária já
com mais setenta títulos publicados e muitos planos e ideias que eu ainda quero
concretizar.


Hoje moro novamente em São Paulo e há
sonhos que nunca morrem. E vou continuar a alimentá-los mesmo conhecendo todos
os meandros e dificuldades da minha profissão! Ainda alimento o sonho de ser
contratado por uma grande editora e poder me dedicar só ao ato de escrever,
sendo distribuído nacionalmente. Sonho em ainda trabalhar em um grande jornal
como cronista ou colunista. Não desisti de ser um roteirista de cinema e
televisão, dramaturgo no teatro, embora sei que tenho que estudar mais se
quiser desbravar meu caminho nos campos audiovisual e cênico.


Àquela psicóloga que nem de longe
representa o pensamento de nossa categoria, pediu-me para ter consciência que
eu era um “deficiente”. Porém, ao longo da minha existência, preferi ter a
consciência que, como qualquer pessoa que sonha e vai buscar seus objetivos,
sou totalmente capaz! O importante é que aquele menino limitado por sua paralisia
cerebral, alfabetizado aos cinco anos e que queria ser escritor, nunca deixou
de sonhar!

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