Artigo publicado parceria com a psicóloga Marina Colombo Amarante, na Revista Psicologia Hospitalar (São Paulo), v.5.n1, 2007. Antes, o artigo foi apresentado como trabalho final da disciplina Psicologia Hospitalar, ministrada pela Professora Ms. Maria de Fátima Belancieri, na Universidade do Sagrado Coração – USC/Bauru.
RESUMO: Fazendo uma revisão histórica, este artigo narra o uso da arte em ambiente hospitalares, relembrando o início internacional dessa prática no século XIX, com ênfase maior no trabalho dos médicos brasileiros Osório Cesar no Hospital Psiquiátrico do Juquery durante os anos 20 e de Nise da Silveira, originando o Museu Imagem do Inconsciente no Rio de Janeiro. E, com base nesses relatos históricos, propõe a criação de ateliês de arte em hospitais como forma de convivência, em alguns casos como uma técnica projetiva; amenizar as condições emocionais do internado, ajudando nas respostas aos medicamentos e ao sucesso terapêutico, dentre os inúmeros benefícios que a arte pode trazer.
INTRODUÇÃO
Vivemos em uma cultura onde se valoriza a busca do novo e descobertas inéditas, tanto na vida como nas pesquisas científicas. Poucos estudos, principalmente em psicologia, estão olhando para o passado e notando o muito que ele tem a nos contar. E esta é a proposta deste artigo. Revisitar a história de vida e atividades de dois pioneiros brasileiros, Osório Cesar e Nise da Silveira. Em comum, foram médicos psiquiatras, tendo como grandes feitos, embora em décadas diferentes, a coragem de introduzir o uso da arte em ambientes hospitalares, obtendo resultados surpreendentes com pacientes, até mesmos os de patologias mentais profundas. E, espelhado neles, podemos lançar uma questão: É possível que trabalhos históricos possam ser redescobertos, aperfeiçoados e retomados no contexto atual – principalmente por psicólogos hospitalares?
Por se tratar de uma pesquisa caráter histórico, tivemos que utilizar uma documentação de áreas variadas, aqui agrupada por semelhança. Entrando no campo da arte e loucura, Frayre-Pereira (1994), traça algumas reflexões sobre o tema loucura, antigos e atuais conceitos, determinações históricas, apresentando alguma poucas páginas sobre a loucura representadas em obras renascentistas. No livro-documentário sobre o Museu de Imagens do Inconsciente, Silveira (1980), através de suas recordações pessoais, nos oferece uma minuciosa e detalhada história e desenvolvimento do museu e na mesma obra, Pedrosa (1980) assina a introdução da obra e em várias partes apresenta dados de artistas e comenta pinturas reproduzidas na publicação. Em um amplo levantamento da arte brasileira, Morais (1991) registra em detalhes dos séculos das artes brasileira, seus vários movimentos, explicando em tópicos separados os conceitos de art brut e arte incomum, além de destacar biografias da artista com problemas mentais que se destacaram nas artes plásticas. Fruto de sua tese de doutorado, voltamos a Frayre-Pereira (1995), onde o autor registra e analisa as percepções estéticas no público que visita exposições de obras pintadas por pessoas com problemas mentais. Já Ferraz (1998), traça inicialmente um panorama do assunto, entrando na análise do trabalho e escritos de Osório Cesar, psiquiatra que na década 1920 instituiu a arte como terapia de esquizofrênicos no Hospital do Juquery. Isso gerou inúmeros trabalhos e recuperações terapêuticas e hoje há um museu no local documentando toda essa história. Novamente Silveira (2001), traça algumas reflexões e conceitos sobre imagens do inconsciente, resume estudos de vários autores que pesquisaram e escreveram sobre arte produzidas por pacientes com distúrbios mentais, apresentando em vários capítulos suas próprias experiências e pesquisas como psiquiatra. Em seu artigo rico em informações, Mello (2002), aborda todas as fases internacionais do estudo sobre o tema “arte e loucura”, desde o século XIX. Analisa os principais autores do assunto, entrando no contexto brasileiro, historiografando tudo que já foi feito a partir da década 1920 até o presente.
Partindo de nossa curiosidade, planejamos uma pesquisa bibliográfica, onde está fixada a estrutura do artigo. Consultamos várias obras sem periodicidade da biblioteca “Cor Jesu” da Universidade Sagrado do Coração-USC, do nosso acervo particular e materiais com periodicidades como jornais, revistas e documentos eletrônicos, onde que os tópicos que foram aparecendo e a cada leitura, uma ou mais curiosidades apontavam outra ligação com a temática, ou nos revelava novos documentos. Utilizando o método analítico-sintético, focamos a arte usada pela psiquiatria no tratamento de esquizofrênicos e a existência de um museu especializado em arte e loucura.
1.0 – PRIMEIROS APONTAMENTOS HISTÓRICOS
Procurando as raízes da arte dentro de ambientes hospitalares, veremos que o interesse por trabalhos artísticos realizados por pessoas com problemas mentais, têm seus primeiros registros no início do século XIX, quando o estudo dessa produção, colecionada por médicos psiquiatras tinha interesse científico para fins diagnósticos. As primeiras coleções são do Bethlen Mental Asylum de Londres e do Crichton Royal Hospital da Escócia. O estudo “Gênio e Follia” de Lombroso de 1882 (citado por Mello, 2002), foi um dos primeiros trabalhos significativos sobre a relação entre as desordens psíquicas e a criatividade artística, sendo que esse estudioso já acreditava que as pessoas com transtornos mentais pudessem produzir trabalhos extraordinários. Quase cem anos depois, no século XX, a qualidade artística dessas obras foi efetivamente reconhecida, quando, em 1907, Marcel Reja (citado por Mello, 2002), ensaísta diletante pelas questões marginais escreveu artigos para o “Mercure” da França e o livro “A Arte nos Loucos: Desenho, a poesia e a prosa”, despertando artistas e psiquiatras como Max Ernst e Walter Morgenthaler, que começaram a aprofundar as questões da arte nas inquietantes produções realizadas nas instituições psiquiátricas.
Uma obra monumental estava para surgir. Hans Prinzhorn (citado por Mello, 2002), publicou em 1922, o seu livro “Expressões da Loucura”, abordando a coleção de Heildelberg, fato que permitiu que o valor estético dessas obras começava a ser reconhecido publicamente. Essa coleção documentada no livro, contém até hoje, desenhos, pinturas e bordados de doentes de várias clínicas e nacionalidades, e tudo indica que foi iniciada provavelmente por Emil Kraepelin (citado por Mello, 2002). Diretor da Clínica de 1890 a 1903, ele observou que a doença mental pode “liberar poderes que de outra forma estão contritos por todas espécies de inibição”.
Também de cunho científico em seu livro, Prinzhorn apresentou teorias inovadoras sobre a psicologia da expressão, valorizando extremamente a produção realizada pelos doentes, demonstrando que uma pulsão criadora, uma necessidade de expressão instintiva, sobrevive à desintegração da personalidade. Não vê distinção entre a produção normal e louca, focalizando sua atenção nos princípios formais de configuração: tendências repetitivas, ornamentais, ordenadoras, simétricas, simbólicas que são, em sua maneira de ver, criação de uma forma de linguagem para o próprio autor (Mello, 2002). Prinzhorn rapidamente influenciou o meio da arte, originando entre 1929 e 1933, várias exposições temporárias na França, Alemanha e Suíça. Mas também houve um lado negativo, sendo que o grande impacto criado por essas exposições também despertou uma violenta oposição daqueles que não aceitavam o valor artístico das obras.
A Segunda Guerra Mundial interrompeu todo esse trabalho, pois em 1933 a clínica de Heildelberg foi tomada pelo nazismo. Negativamente, Carl Schneidern (apud Mello, 2002), instalou o programa de exterminação dos doentes mentais e, se apropriando desse material, usou a coleção para fins de propaganda nazista. Realizou-se uma série de exposições na Alemanha e Áustria, comandadas por Joseph Goebbels, comparando depreciativamente o acervo de Heildelberg com obras de artistas da arte moderna como Cézanne, Van Gogh, Klee, Kandinski, Kokosha, Chagall e outros. Intituladas “Arte Degenerada”, exposições contendo um enfoque preconceituoso em relação às duas manifestações, negando-lhes o valor artístico. Para Mello (2002), “grande ironia, esta atitude do nazismo acabaria por comprovar que não há fronteiras entre os ditos normais e os loucos”.
Em 1945, com o fim da Guerra, o artista plástico Jean Dubuffet iniciou uma das mais importantes pesquisas desenvolvidas na Europa. Cria o conceito de “Arte Bruta” que ele define como “produções de toda espécie – desenhos, pinturas, bordados, modelagens, esculturas, etc., que apresentam um caráter espontâneo e fortemente inventivo, que nada devem aos padrões culturais da arte, tendo por autores pessoas obscuras, estranhas aos meios artísticos profissionais” (Thévoz, 1975 apud Mello, 2002). Ajudado por amigos escritores, médicos e pintores como Jean Paulham, Raymond Kueneau, Paul Pudry, Gaston Ferdière, Dubuffet tomou contato com instituições psiquiátricas suíças com o intuito de descobrir produções que fomentassem sua pesquisa em torno do conceito da arte bruta. Ele, que afirmava que a arte seja normal, mas ao contrário, que seja o mais possível inédita, imprevista e extremamente imaginativa, escreveu ele em 1967:
Quanto a nós, desejosos de produções que escapam às normas e abrem novos caminhos para a arte, orientamos uma parte de nossas pesquisas para determinados setores onde existem as melhores possibilidades de se encontrarem indivíduos bastante recalcitrantes, em todos os campos, às convenções sociais e bastante animadas do humor de alienação necessário. Isso nos levou a pesquisar as obras daqueles que, por muito tempo, foram designados pelo termo alienados e que, tomados de um forte individualismo e tendo levado mais longe que os outros suas conseqüências, foram declarados inaptos à vida social e internados em asilos. Encontramos alguns casos (raros, na verdade) de obras extraordinariamente inventivas e, a observação faz-se necessária, mais lucidamente acabadas, das mais metodicamente construídas e administradas que conhecemos” (Mello, 2002).
Empolgado, reuniu uma certa quantidade de obras, fundando a Companhia da Arte Bruta, realizando em 1949, a primeira exposição na Galeria René Drouin com duzentos itens. O catálogo da exposição continha um manifesto intitulado “A Arte Bruta Preferida às Artes Culturais”, sendo que o único brasileiro a participar da mostra foi Albino Brás, que ficou conhecido como “o incomum de São Paulo”. Em 24 de março de 1949, após tomar conhecimento do trabalho desenvolvido pela Drª Nise no Brasil, Dubuffet escreveu uma carta contendo o histórico e os fundamentos de sua pesquisa pedindo fotografias de obras da coleção que também se formava no Brasil na mesma década. Só que aqui no Brasil o termo “art brut” passou a ser “Arte Incomum”. Em fevereiro de 1976 a cidade de Lausanne pôs à disposição o castelo de Beaulieu para a instalação do Museu de Arte Bruta. Tornou-se a coleção de maior destaque na Europa, e continua a desenvolver e ampliar seu acervo com as criações de novos autores. Além de promover exposições e publicações de alto nível, inspirou a formação de coleções e museus em diversos países: em 1982 L’aracine, França; em 1984 Archimago, Bruxelas; 1991, Center for Intuitive and Outsider Art, Chicago. 1994, Museum voor Naive Kunst en Outsider Art, Países Baixos; 1995, American Visionary Art Museum, Baltimore, etc.
2.0 – ARTE NO JUQUERY
Toda essa produção internacional gerou, pelo menos, dois legados aqui no Brasil. O primeiro interesse por este tipo de trabalho surgiu em São Paulo com Osório Cesar, quando em 1923, foi designado estudante interno de psiquiatria do Hospital Juquery. Desde o início já tinha em mente a idéia de estudar a arte dos alienados comparando-a com a arte dos primitivos e das crianças. Esta visão surgiu fundamentalmente quando ele leu as obras de Prinzhorn e L’art et Folie de Vinchon. Passou a reunir uma extensa bibliografia, trazida da Europa.
Com sua experiência e o acúmulo da produção espontânea realizada pelos doentes como pintura, poesia, modelagem, Osório Cesar escreveu em 1929, seu primeiro livro intitulado “A Expressão Artística dos Alienados”. Em um trecho, o médico afirma: “As representações de arte desses doentes são todas emocionais, pois elas são de caráter espontâneo e se dirigem para um fito único: a satisfação de uma necessidade instintiva. Elas representam descargas acumuladas de emoções, durante muito tempo no subconsciente adormecidas pela censura, em virtude de certos impulsos de ordem moral” (Mello, 2002). Essa obra originou-se de um artigo, o qual foi enviado por Osório a diversas personalidades inclusive Freud4, que se dispôs a publicá-lo na revista Imago manifestando satisfação pelo interesse que a Psicanálise despertava no Brasil. Segundo Ferraz (1998), “o interesse de Osório Cesar pela arte dos loucos adivinha de sua formação eclética, apoiada em uma bibliografia atualizada, o que não acontecia com a maioria dos psiquiatras brasileiros na década de 20”.
Motivado, o médico escreveu em 1934 escreveu o artigo “A Arte nos Loucos e Vanguardistas”, manifestando respeito e admiração aos criadores/artistas internados no hospital psiquiátrico:
Uma grande parte dos alienados dos hospitais se entrega espontaneamente a cogitações artísticas de toda a espécie: pintura, escultura, poesia e música. E este fato é comum mesmo entre os indivíduos incultos que na vida normal nunca se interessaram por coisas tais.
Essas manifestações artísticas, um tanto singulares nesses doentes mentais enclausurados, nos causam grande admiração e por isso mesmo instigam nosso espírito à explicação de semelhante proceder. Pois, toda gente pensa que um louco é um indivíduo que somente sabe dizer coisas engraçadas e atrapalhadas como um palhaço de circo; que só faz más ações; que se enfurece por coisas insignificantes. (…) No entanto o alienado nem sempre é isso. (Mello, 2002)
Não só de artes plásticas, mas também de música se desenvolviam as atividades no hospital, conforme relato de Ferraz (1998):
Pelos relatos de Osório Cesar (1929 e 1945), os pacientes do Juquery não se dedicavam apenas às artes plásticas ou artesanais; a música era igualmente incentivada, chegando a formar-se um conjunto musical, denominado “charanga bebefrênica”. O grupo era formado entre os internos das várias colônias e pavilhões, com cerca de quinze pessoas que tinham alguma experiência musical, e era regido por um dos pacientes, que era músico e compositor. Osório Cesar conta que esse conjunto durou muitos anos, tocando em datas festivas ou para visitantes ilustres do hospital e com um repertório variado, composto por dobrados, valsas, tangos e maxixes. Havia momentos nas apresentações em que pacientes epilépticos ou com delírios interrompiam as execuções, enquanto os demais continuavam a tocar como se nada houvesse ocorrido: “…o curioso estava em que os executantes não se impressionavam com esses imprevistos e continuavam na maior calma…”, escreveu o médico.
Osório Cesar não apenas se deteve em pesquisas e escritos, como também foi responsável por outras realizações: exemplo disto foi a primeira exposição organizada por ele no Museu de Arte de São Paulo-MASP, em outubro de 1948, despertando interesse em psiquiatras, artistas e intelectuais tais como: Flávio de Carvalho, Lourival Gomes Machado, Sérgio Milliet, Quirino da Silva, Luís Martins que realizaram encontros e debates sobre as questões despertadas por esta produção. Segundo Ferraz, 1998,
a mostra de desenhos à lápis preto e de cor (hoje pertencentes ao acervo do MASP) foi selecionada dentre os trabalhos do hospital e constituiu-se e mais um dos atos pioneiros de Osório Cesar; antes deles, no Brasil, ninguém se aventurara em realizar uma exposição de desenhos de loucos dentro do espaço de um museu de arte. Mas essa idéia não era nova para o crítico Osório Cesar, que já pensava em uma exposição dessa ordem desde 1941. Além disso, Osório Cesar, tinha uma concepção de “Museu de Arte” para o Brasil que ultrapassava o sentido museográfico tradicional conhecido na época, enaltecendo as realizações educativas e preocupando-se com a educação estética dos estudantes (p.. 63).
Outros relatos de Ferraz (1998), dar-nos uma visão do panorama da época:
No meio intelectual paulista, o reconhecimento das produções artísticas dos loucos, ganha novo impulso, a ponto de se cogitar um Salão de Arte dos Loucos. O salão, que faria parte da “Segunda Semana de Arte Moderna”, a realizar-se em 1942, teria como curador Osório Cesar. Entrevistado pelo jornal Diário da Noite, comenta que o material iconográfico a ser exposto seria selecionado dentre as peças de sua coleção particular e de outros médicos de São Paulo e do Rio de Janeiro. A mostra acompanharia outra do mesmo porte – um Salão de Arte Infantil. Nessa reportagem, os eventos eram comentados com muito entusiasmo e sugeriam, inclusive, a constituição de um museu de arte em São Paulo. No entanto, não encontramos em nossas pesquisas qualquer menção à possível realização dos salões ou até mesmo da Segunda Semana de Arte Moderna em 1942, provavelmente pelas implicações que o país vivia no período de guerra.5
Enquanto isso, no Juquery, a prática artística avança seu primeiro degrau. Aparece, em 1943, como designação de parte das ações de praxiterapia, a oficina de pintura. Embora não existam registros de um local apropriado para as atividades de pintura, entendemos que esse momento corresponde a uma primeira sistematização dos trabalhos com arte, que possam a ser vistos como uma das várias modalidades profissionais: “...alguns dão para a pintura artística, literatura, música ou descambam para outras atividades”.6
Infelizmente, grande parte deste acervo foi perdida ou comercializada; alguns desenhos do início desse trabalho pioneiro, foram doados por Osório ao MASP. Recentemente, o que sobrou dessa coleção foi encontrado num galpão do Hospital Juquery, por um grupo de funcionários. Posteriormente, outras obras dispersas pelo complexo hospitalar, foram encontradas. O esforço da equipe que organizou a coleção – Heloisa Ferraz, Solange del Nero, Lourdes Gallo, Helena Fenerich e outros, resultou na inauguração do Museu Osório Cesar em Dezembro de 1985, na antiga residência do primeiro diretor do Juquery, Dr. Franco da Rocha. Seu acervo contém mais de 5 mil obras entre desenhos, pinturas, esculturas e gravuras que em sua maioria pertencem às décadas de 40 e 50, quando funcionava a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, criada por Osório. A partir de sua inauguração o Museu vem promovendo exposições, publicações e mantém até hoje um ateliê de arte em funcionamento (Ferraz, 1998).
Nos seus últimos dias de vida, Osório Cesar recebeu um jornalista da Folha de S.Paulo, onde em certo trecho de seu depoimento, relatou o seu trabalho realizado, lamentando que o mesmo não tivesse tido prosseguimento:
Meu trabalho foi facilitado, pois entrei para o Juquery, em 1925… Curei muitos doentes mentais pela arte… Fiz muitas exposições de seus trabalhos, aqui, no Rio, em Paris, sempre pioneiramente… Por que não, a cura pela arte?… Van Gogh não era um louco, e, hoje, não é considerado um gênio?… Acho que fiz umas 50 exposições desse tipo, e o Rebolo e toda geração 40/50 devem se lembrar das mostras de psicopatas no Clubinho dos Artistas… Mas, a mais importante, foi que a levei para a Sociedade de Psicologia, de Paris, onde falei a mais de 200 médicos ali reunidos… Pena que com exceções, esse movimento não tivesse sido continuado até hoje.7
3.0 – NISE DA SILVEIRA E O MUSEU IMAGENS DO INCONSCIENTE
Inconformada com os métodos violentos de tratamento psiquiátricos a psiquiatra Nise da Silveira, encontrou uma outra forma de tratamento para o esquizofrênico, ao fundar o Serviço de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1946. Na época, os maiores avanços da psiquiatria mundial ainda eram a lobotomia, que surgiu durante o salazarismo em Portugal, o coma insulínico e o eletrochoque, inventado na Itália fascista. Nise, baixinha e franzina, comprou uma briga com a direção do hospital ao se recusar a usar eletrochoques e psicotrópicos, e ao distribuir tintas, pincéis e argila aos esquizofrênicos. Com o material para poder criar, eles passaram a ter uma vida útil e criativa, dentro de um espaço onde antes se sentiam mortos. Nise interpretava suas obras e assim os tratava, lendo nas pinturas e esculturas seus ricos e perturbados inconscientes. Em 46 anos de trabalho, reuniu mais de 300 mil peças de arte, que hoje formam o acervo do Museu do Inconsciente, no mesmo hospital, e mandou a maior parte dos pacientes para casa, curados.
Alagoana, Nise saiu de Maceió aos 15 anos para estudar no Rio. O pai havia morrido e ela, filha única, decidiu que precisava abrir os horizontes. Formou-se em Medicina – foi a única mulher num grupo de 156 homens – e especializou-se em neurologia. Recusou-se a chamar de pacientes aqueles a quem dedicou seu trabalho. Também não os chamava de loucos ou doentes mentais. “Eles são pessoas como as outras, são clientes”, dizia. “Chamo-os todos pelo nome.” Nise sempre acreditou em terapias mais humanas. Certa de que seus clientes precisavam dar e receber afeto, ela levou cães e gatos ao hospital e os nomeou co-terapeutas, experiência hoje feita em clínicas de todo o mundo. Amiga do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, com quem se correspondeu por vários anos, recebeu dele o conselho para estudar mitologia, que depois considerou outra peça-chave de seu trabalho. Escreveu seis livros, o último deles sobre gatos, uma de suas paixões. Em 1990, uma fratura na perna a levou à cadeira de rodas, de onde não mais saiu. Foi ativa até o fim. Um dia antes de morrer, aos 94 anos, recebeu em seu apartamento, no Rio, o grupo de estudos que mantinha para discutir psicanálise e psiquiatria.
Foi através das atividades expressivas como pintura, modelagem e xilogravura que surgiria em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente. Atualmente seu acervo contém cerca de 350 mil obras entre pinturas desenhos, modelagens, xilogravuras. Parte desta coleção está catalogada, e é no gênero, uma das maiores e mais diferenciadas coleções do mundo. Além do reconhecimento do valor artístico do acervo pelos artistas e experts em arte o Museu realizou ao longo de seus 54 anos de existência mais de 100 exposições no Brasil e no exterior, dando maior ênfase ao aspecto científico da coleção. Essas exposições sempre atraíram grande público. Seja pelo fascínio das formas como também pela revelação do inconsciente.
As pinturas e desenhos desenvolvidos por esses pacientes geravam interrogações que não encontravam resposta na formação psiquiátrica acadêmica. Essas questões impulsionaram a Drª Nise à busca de conhecimento e aprofundamento dos processos que se desdobravam no interior daqueles indivíduos, revelados através das imagens e símbolos.
O trabalho do Museu faz parte da história da reforma psiquiátrica no país, e vem, através de suas atividades, exercendo influência no processo de transformação dos espaços e dos métodos terapêuticos, constituindo-se em um centro de referência na área da Saúde Mental. O Museu está localizado no bairro de Engenho de Dentro no Rio de Janeiro, e é uma das unidades que compõem o Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. Vale recordar alguns trechos de suas:
A história do Museu de Imagens do Inconsciente é uma história singular. Este museu teve origem humilde, pois nasceu na Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, Rio de Janeiro. E acontece que a psiquiatria vigente considera o tratamento por meio de atividades acupacionais método subalterno, mero auxiliar dos tratamentos aceitos em primeiro plano, tais como medicamentos psicotrópicos, convulsoterapia, psicocirurgia. Assim, a história do Museu de Imagens do Inconsciente está intrinsecamente vinculado à história da Seção de Terapêutica Ocupacional.
No ano de 1946, Paulo Elejalde diretor do Centro Psiquiátrico Nacional, convidou-nos para organizar a terapêutica ocupacional naquele conjunto hospitalar. Ficou de início estabelecido entre nós quer a terapêutica ocupacional sob nossa orientação seria entendida num largo sentido, não visaria a produção de utilidades para o hospital, mas teria por meta encontrar atividades que servissem de meios individualizados de expressão. Disporíamos da verba anual de 30 mil cruzeiros (antigos) que utilizaríamos como melhor nos parecesse. De fato, o museu surgiu dos ateliers de pintura e modelagem instalados em situação de igualdade ao lado de vários outros setores ocupacionais – encadernação, marcenaria, trabalhos manuais femininos, costura, música, danças folclóricas, recreação etc.
Aconteceu, porém, que a expressão livre através do desenho, pintura e modelagem, mais que em qualquer outra atividade revelou-se de grande interesse científico por permitir menos difícil acesso ao mundo interno do esquizofrênico, sempre tão hermético. Além disso, as configurações plásticas captavam imagens da situação psíquica, possibilitando assim estudos posteriores. E simultaneamente verificava-se de maneira empírica a surpreendente eficácia da expressão plástica como verdadeira modalidade de psicoterapia. (1980, p. 13)
Cientificamente, a Drª. Nise buscava conhecimento e aprofundamento dos processos que se desdobravam no interior daqueles indivíduos, revelados através das imagens e símbolos. Segundo Mello (2002),
essas pesquisas, contrariamente à visão psiquiátrica predominante, nunca procuraram descobrir patologia nesta produção, mas penetrar nas dimensões e mistérios dos processos do inconsciente. As imagens constituem material sadio, universal e muitas vezes sua compreensão se faz através da pesquisa comparada com as histórias da religião e da arte, mitologia, etc. numa verdadeira arqueologia da psique.
O Centro Psiquiátrico nessa época tinha um mil e quinhentos internos, em sua maioria esquizofrênicos crônicos, que normalmente ficavam abandonados nos pátios do hospital. Nesses pátios e nas enfermarias que foi se descobrindo e reunindo no ateliê um grupo de esquizofrênicos cuja produção logo começou a se destacar.
Daí nasceu à idéia de organizar-se um Museu que reunisse as obras criadas nesses setores de atividade, a fim de oferecer ao pesquisador, condições para o estudo de imagens e símbolos, e para o acompanhamento da evolução de casos clínicos através da produção plástica espontânea.
Em 20 de maio de 1952 foi inaugurado o Museu de Imagens do Inconsciente, numa pequena sala. Em 28 de setembro de 1956 passou a ocupar mais amplas instalações inauguradas com a presença dos ilustres psiquiatras Henry Ey, Paris; Lopez Íbor, Madrid; e Ramom Sarro, Barcelona, que se encontravam no Rio a convite da Universidade do Brasil. Já naquela data, segundo o professor Lopez Íbor, o Museu de Imagens do Inconsciente “reunia uma coleção artística psicopatológica única no mundo” (Silveira, 1980).
Não cessando de crescer, diretamente vinculado aos ateliês de pintura e de modelagem, recebe cada dia novos documentos plásticos. Seu acervo reúne atualmente cerca de 350 mil documentos entre telas, pinturas, desenhos e modelagens. Centro vivo de estudo e pesquisa sobre as imagens do inconsciente, aberto aos estudiosos de todas as escolas psiquiátricas.
A experiência desenvolvida por Nise da Silveira abriu portas para o surgimento de diversos tipos semelhantes de instituições, sempre em regime de externato, implantando uma nova política de saúde mental que procura evitar as onerosas e cruéis internações, colaborando para a extinção gradual das instituições asilares. Iniciativas como o Espaço Aberto ao Tempo, no Rio de Janeiro e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) inicialmente organizados em Campinas, São Paulo e Santos, espalham-se pelo país. Esses diversos centros de Reabilitação Psicossocial, onde as atividades expressivas têm destaque, certamente revelarão novos talentos nas artes plásticas brasileiras.
Segundo Nise (1981, apud Mello, 2002),
os internados em hospitais psiquiátricos que têm o recurso de usar a linguagem plástica como meio de expressão, os artistas “brutos”, os marginais de vários gêneros e de várias artes, constituem uma enorme família. Há decerto grandes distâncias e diferenças entre eles, mas uma grande afinidade os aproxima. Se procurarmos esse denominador comum, encontraremos sempre presentes nesses indivíduos contatos peculiares, em graus mais ou menos intensos, com a psique inconsciente, incomuns para as pessoas bem adaptadas às normas sociais. Os pintores “ingênuos” formam outra família. São movidos pela tendência a enfatizar com os objetos do mundo externo, neles encontrando prazer e inspiração, ao contrário dos membros da outra família, que se voltam para representações interiores, por mais inquietantes que sejam”.
CONCLUSÃO
Uma vez em que a Psicologia vem sendo inserida no hospital, lança-se mão de rever seus próprios postulados, construindo novos conceitos e questionamentos na busca da compreensão humana. Tendo como uma de suas metas, a minimização do sofrimento provocado pela hospitalização, o psicólogo tem um leque bastante amplo de opções de atuação neste campo em plena expansão. E a arte pode ser uma dessas opções, conforme vimos nos trabalhos desenvolvidos por Osório Cesar e Nise da Silveira. O fazer artístico têm inúmeras possibilidades como tornar o ambiente mais agradável e sociabilizado – uma vez que em um ateliê no hospital várias pessoas conviverão ao mesmo tempo; ser uma maneira de não deixar o paciente muito tempo ocioso; servir em alguns casos como uma técnica projetiva; amenizar as condições emocionais do internado, pois o estresse pode prejudicar as respostas aos medicamentos e ao sucesso terapêutico. São inúmeros os benefícios que a arte pode trazer para o ambiente hospitalar. Basta ao psicólogo ter a sensibilidade de trabalhar com ela.
NOTAS
Infelizmente, um incêndio ocorrido em dezembro de 2005 no prédio centenário neo-romântico projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo e em processo de tombamento, onde funcionava o setor administrativo do Complexo Hospitalar do Juquery, só sobrou o busto de bronze de Franco da Rocha, fundador em 1898 do hospital que chegou a abrigar, em seu auge, 18 mil pessoas. A suspeita é que um raio tenha atingido o prédio, pois chovia muito na madrugada. Entre os 136 mil prontuários de pacientes, 15 mil livros e documentos destruídos, estava o original da carta de Freud, parabenizando o ex-diretor Osório Cesar, documento mais valioso que foi perdido, em termos históricos. No texto, Freud elogiava o novo projeto, descrito por Cesar como uma área de campo, em que a agricultura seria utilizada para o tratamento. Com a reforma psiquiátrica implementada a partir dos anos 70, o Juquery passou a ser símbolo de tudo o que não se quer no tratamento de transtornos mentais: áreas grandes, impessoais, afastamento da família.
A autora está mencionando a matéria “A arte dos alienados é tão interessante quanto a arte moderna”. Diário da Noite, 19 abril de 1941, p. 3.
Frase retirada da matéria “Visto por dentro… Juquery, um dos maiores hospitais de alienados do mundo”, A Gazeta, São Paulo, 12 de julho de 1943.
Reportagem de KAWALL, L.E. Memória – 4 – Osório Cesar, 83 anos, pioneiro esquecido. Ilustrada. Folha de São Paulo, domingo, 12 de agosto de 1979.
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