Artigo publicado no Estadão, blog do jornalista Fausto Macedo,
em 28 de setembro de 2022
Nas décadas 1980 e 1990, lutávamos para que as pessoas com
deficiência tivessem uma imagem normalizada, nem de coitadinhos nem de super-heróis.
Discutíamos sim, nosso lugar e direitos na sociedade, mas sem esconder os
prejuízos e dificuldades que uma deficiência pode trazer. Agora na atualidade
vejo que cada vez mais se luta para construir, principalmente em algumas mídias
e nas redes sociais, a imagem das pessoas com deficiência empoderadas, bem-sucedidas,
com muitos direitos e vitórias. Isso maquia também os deveres e obrigações que
essas pessoas têm e impede as discussões mais profundas sobre os obstáculos e
as perdas que as deficiências trazem e como amenizá-los. Levantando também a
questão da importância da convivência social.
Em julho de 2020, durante minha entrevista à coluna Primeira
Pessoa da Revista Veja, a repórter me perguntou se a minha deficiência me
prejudicou em algo em minha vida pessoal ou carreira profissional. Embora eu
tenha dado uma resposta simples à ela, foi o momento que comecei a refletir sobre
isto. Após várias autorreflexões autuais, hoje não me omito em reconhecer que,
mesmo com toda minha caminhada, conquistas e produção, minha deficiência me
trouxe várias barreiras profissionais. E estou aberto em falar sobre isto.
Agora, quando recentemente foi lançado o documentário
“Digitando Com Um Dedo”, ao rever toda minha trajetória e produção no mundo da
Inclusão, aumentei essa reflexão. Isto porque, após cursar três faculdades seis
pós-graduações, escrever mais de quinhentos textos para a imprensa, publicar
quase que de forma alternativa perto de cem livros entre científicos e ficções
variadas, escrever algumas coisas para o teatro e roteiro para cinema, cheguei
a esta conclusão:
Sim, a deficiência motora fez de mim um escritor
desconhecido!
Antigamente
eu não ligava por aparecer enquanto pessoa; estar nos bastidores da vida, era
como estar acomodado em uma zona de conforto. Aliás, o fato de viver isolado
foi o que me proporcionou longos tempos para estudar, ler, produzir muitas e
variadas obras. Todas minhas publicações eram apenas o nome “Emílio Figueira”
impresso em jornais, revistas, sites e capas de livros, sem um rosto ou uma
pessoa física por trás falando por eles.
Com isso,
não pude conviver com outros profissionais da minha área, ficar conhecido
enquanto pessoa. Os editores das grandes editoras nem imaginam que eu existo. Não
consegui contratos de publicações com elas, ter equipes editoriais para ajudar me
na produção de nível, divulgação de minhas obras, o que me liberaria só para
escrever, criar tantos enredos que tenho em mente. Coisas que até hoje tenho
que fazer sozinho, paralelo à minha escrita e me tomam muito tempo por ser um
autor alternativo, o que me levou a ter que estudar editoriação, artes gráficas
para produzir e lançar minhas próprias obras.
A
deficiência motora não me permitiu a frequentar e ter amigos nas rodas
literárias, Academias de Letras, trocar ideias, opiniões de textos, livros,
incentivos mútuos. Nunca fui convidado para participar de Bienais ou Feiras de
Livros; nem mesmo pelas editoras que já me publicaram.
Não pude conviver com jornalistas, tanto no
trabalho, quanto em bate-papos de botecos ou restaurantes. Frequentar redações de
jornais, revistas e sites. Minha dificuldade de fala me impediu de dar
entrevistas em rádios, televisões, pois já houve produtores que cancelaram minha
participação quando ficaram sabendo da minha dificuldade de fala. Tenho mais
dificuldades para gravar muitos mais vídeos para internet por ter que gastar
muito mais tempo para legendá-los.
Não me
permitiu ser uma figura no mundo cênico. Frequentar as coxias de inúmeras
montagens de peças teatrais, musicais. Ser amigo de atrizes, atores,
dramaturgos, diretores, produtores, pessoal técnico; o que me impediu de viver
realmente esse universo, mostrar a eles minha dramaturgia, ter meus textos
montados. Não pude frequentar bastidores de emissoras, conhecer os
comunicadores, produtoras cinematográficas, a turma do mundo audiovisual, ter
abertura e me reafirmar enquanto roteirista.
Por isto, sou seguro em reafirmar: Sim, a
deficiência motora fez de mim um escritor desconhecido!
Ao passar dos
cinquenta anos, vejo que isso me impediu de alcançar mais
posições em minha carreira, o que eu achava que aconteceria naturalmente. Só
que minha obra ficou conhecida em alguns poucos segmentos, principalmente no
campo da Educação. A pessoa por traz dela não. Minha deficiência não me
permitiu a fazer netword, pitch ao longo dos anos.
Sinto isto
hoje, porque, mesmo com toda a obra que já produzi, há uns três anos tento uma
vaga de cronista ou colunista em algum grande jornal ou site (meu grande sonho
de infância!). Só que sou totalmente desconhecido deles e nem se quer consigo
uma oportunidade nas redações para falar sobre isso.
No início
deste ano, por motivos literários, minha biografia e obras chegou ao
conhecimento dos mais renomados literatos paulistanos; depois, simpática e
carinhosamente, disseram-me que ainda não me conheciam.
Ter
chances em me apresentar à uma grande editora, desenvolver um trabalho
literário de alto nível então, nem pensar; se envio uma carta ou e-mail (comunicação
que está ao meu alcance), a um agente literário ou editor, nem resposta recebo.
Afinal, para eles que não me conhecem e convivem comigo, sou apenas mais um na
multidão.
A
psicóloga Suely Harumi Satow, em seu livro “Paralisado Cerebral: Construção Da
Identidade Na Exclusão”, fruto de sua tese de doutorado em psicologia na PUC-SP
em 1994, afirma que nós, paralisados cerebrais, construímos nossas identidades
silenciosamente excluídos. Levei quase quarenta anos para perceber que o meu
caso não foi diferente!
O
importante agora é que, psicologicamente, tenho a consciência que preciso
trabalhar minha imagem enquanto escritor. Ao mesmo tempo em que estou revisitando,
revisando e “´plantando” no mundo digital toda a minha literatura produzida a
que passou despercebida ao longo dessas décadas por minha imagem ter estado
fortemente ligada ao mundo da inclusão e na militância pelas pessoas com
deficiência.
Se tem
algo que aprendi com tudo isso e continuo acreditando, é que a deficiência pode
limitar nossos aspectos físicos. Mas nunca limitará nossas capacidades humanas e
criatividades artísticas.