Você já parou para pensar quantas coisas paradas temos em casa que poderiam estar servindo para outras pessoas? Que doar, além de ser um gesto nobre e de desapego com bens materiais, pode significar simbolicamente abrir espaço para o novo entrar em nossas vidas?
Conversando com uma conhecida, ela ficou espantada quando lhe
contei que já possui uma biblioteca particular de quase três mil volumes. Desde
muito pequeno, fui fascinado em formar um acervo desses. Comecei juntando
livros que foram da época de escola dos meus tios e mãe e que estavam perdidos
em caixas com outros objetos guardados na casa da minha avó. Ganhava livros de
uma vizinha no prédio onde morávamos no Bom Retiro. Minha bisavó – com quem
tive o prazer de conviver até meus 19 anos – também me deu vários. A minha
biblioteca ia se formando, mesmo eu sem ainda ter planos para com eles e me
definir profissionalmente. Mas uma certeza já tinha. Querer ter muitos livros.
O prazer de senti-los nas mãos, foliá-los, sentir seu cheiro, marcar a página
onde parei e poder voltar nele depois...
A formação de minha biblioteca sempre acompanhou cada
momento de indecisões e escolhas profissionais que tive. E olha que foram
muitos. Já morando em Bauru, frequentei a maior livraria da cidade diariamente
durante quinze anos. Lá comprei muitas obras, convivi com livreiros, escritores
e poetas. Também como um belo cara-de-pau, mandava cartas datilografadas a dois
dedos às editoras pedindo doações de exemplares para divulgação. Claro que eu
cumpria o combinado, escrevia sobre essas obras para jornais que eu tinha
acesso. Com isso, ganhei mais de duzentas obras.
Em 1994, morando em Bauru, montei o meu escritório
particular no que era para ser um quarto para visita. Meus livros saíram das
caixas e foram distribuídos em armários e estantes. Nas paredes, quadros
pintados por mim. Ali foi por muitos anos o meu local de estudo e produção.
Tinha muito prazer em sempre reorganizá-los, limpá-los.
Sonhando mais alto, passei a imaginar como seria se um dia
eu me casasse. Deixaria sem nenhum problema a esposa decorar toda a casa,
escolher os móveis ao seu gosto, valendo-se do título de “dona de casa”! Mas o
escritório da minha residência, eu iria planejar do meu jeito, com uma parede
de cima abaixo com todos os livros que me acompanhavam desde a infância.
Afinal, quem iria trabalhar nele para sustentar a família era eu. Ou pelo menos
me refugiar lá quando ela estivesse naqueles dias.
No final da faculdade de psicologia, ao olhar a biblioteca
da USC com seus mais de 350 mil volumes, onde passei muitas horas caminhando
entre eles, comecei a refletir que muitos dos meus três mil livros não tinham
naquele acervo. Em seguida, assistindo há algumas entrevistas do grande
bibliógrafo brasileiro José Mandarin que doou 60 mil livros de sua biblioteca
para USP, cheguei à conclusão que meu acervo era quase injusto permanecer
somente para uma pessoa. Estudei uma forma de colocá-los à disposição de um
número cada vez maior de pessoas, a serviço do aprender. E me deu um enorme e
feliz desejo: doar grande parte à Biblioteca “Cor Jesu” e saber que futuras
gerações de alunos dos mais variados cursos da USC poderiam se beneficiar
deles.
Quando estava catalogando todos em um inventário de doação,
percebi o quanto essas obras foram importantes na minha formação. Permitiram-me
absorver um pouco de conhecimentos de áreas variadas que somando tudo, hoje
tenho condições de me desenvolver em várias áreas, principalmente na escrita.
Elas contavam um pouco da minha trajetória como intelectual.
Essa não foi a primeira vez que fiz isso. Durante toda a
minha vida, sempre levei o material que não me interessava às mais diversas
bibliotecas. E embora há alguns anos não vou à USC, fico imaginando quantas e
quantas pessoas estão se beneficiando do que doei. E isso é muito gratificante.
O que desejava ter só para mim, hoje serve para muitos. Colaboram na formação
de futuros profissionais que também vão ajudar a muitos.
De certo que ainda estou solteiro e nem formei a biblioteca
que sonhei em ter na vida de casado. Mas ainda estou no jogo, disponível no
mercado. E não perdi o entusiasmo. Voltei a formar uma nova biblioteca. Já
tenho em torno de 150 livros!