Superproteção, autonomia e capacitismo: como pais e educadores podem apoiar sem limitar


Entrevista publicada em 07 de abril de 2025 no Portal do TEA @portaldoteaoficial. Matéria em apoio aos seus livros pela Wak Editora @wakeditora, “Psicologia e Inclusão” e “As Pessoas Com Deficiência Na História Do Brasil”, editados por Pedro Wak @pedro.wak e apoio na divulgação de Ana Lúcia Bonfim @analucia.bomfim, assessora de imprensa.

Nesta entrevista, o psicólogo Emílio Figueira aborda como a superproteção pode prejudicar a autonomia de crianças com deficiência, reforçando o capacitismo. Ele compartilha estratégias práticas para pais e educadores apoiarem sem limitar, incentivando independência, autoestima e desenvolvimento saudável.

Emílio, você tem uma história de vida marcante, cheia de superações. Como foi sua experiência pessoal com superproteção durante a infância e juventude?

Eu digo que muito disso tem a ver com o meu processo escolar. Meus primeiros anos escolares foram isolados dentro da AACD – Associação de Assistência à Criança Deficiente. Em 1977, fui transferido para a AACD-Santana. Nessa época existia um muro interno que separava essa unidade do Colégio Buenos Aires, impedindo nós os alunos com deficiência em ter contato com os demais. Quantas vezes eu ficava olhando pelo portão de grade com cadeado as crianças correndo e brincando no pátio e não podia participar com elas. E, quando o colégio tinha alguma Data Comemorativa, o cadeado era aberto e nós, alunos da AACD, podíamos ir até lá. Mas ficávamos separados, vigiados em um canto do pátio sem poder se misturar e brincar com as demais crianças.

Só que eu conheci os dois lados da educação. Em 1981, ao ser desligado da AACD, aos 11 anos de idade, mudei-me para um colégio público em uma cidade pequena, aonde moravam meus avós maternos. Na AACD, eu estava no equivalente à quarta série. Especialistas da época acharam por bem me regredir dois anos, temendo que eu não acompanhasse a classe e me matricularam na segunda série.

Fui para a classe do professor Maroca, aliás, meu amigão até hoje. Comecei a acompanhar todas as matérias como os demais alunos, a fazer e entregar trabalhos, participar dentro das minhas possibilidades de todas as atividades. A fazer provas e ter que tirar as médias para fechar o ano. Sem qualquer privilégio, o que não pode haver para ninguém na Educação Inclusiva, a única diferença, era que o professor Maroca colava minhas folhas de atividades com durex na mesa para eu escrever.

O ano findou, fui passando de ano, mudando de professores. Cheguei ao antigo ginásio, tive que me adaptar a mudar de professor a cada cinquenta minutos. Tudo foi acontecendo normalmente pela convivência escolar. Como eu digo, para as coisas acontecerem, basta nos colocarmos em movimento.

Esse desenvolvimento não foi só cognitivo, como também social e pessoal. Ao ser incluído na escola regular, comecei a fazer amigos. Amizades que ultrapassavam os muros escolares e eu era levado para todos os lugares por eles, participava de todas as brincadeiras e aventuras. Crescíamos juntos e descobríamos os sabores e dissabores da adolescência.

Aquele menino que na época da AACD não podia nem ter amizades com as demais crianças, agora estava totalmente incluído. Muitas coisas aprendi e superei tendo a minha deficiência e imitando meus amigos sem deficiência. Oportunidade que eu não teria se eu tivesse ficado com crianças iguais a mim na escola especial...

O que você acha que mais te ajudou a desenvolver autonomia e autoestima ao longo da vida?

 Desde pequeno, minha família sempre me incentivou a ser o mais autônomo possível, acreditando no meu potencial e me proporcionando oportunidades para desenvolver minhas habilidades. A reabilitação e as estimulações precoces tiveram um papel fundamental nesse processo, ajudando-me a superar desafios e a encontrar maneiras eficientes de realizar minhas atividades diárias. Esse apoio contínuo foi essencial para construir minha autoestima, pois me mostrou que eu era capaz de conquistar meus objetivos, independentemente das dificuldades. O incentivo à independência, aliado ao suporte adequado, fez toda a diferença na minha jornada.

Superproteção: o que é e como acontece?

A superproteção é um comportamento em que pais, professores ou cuidadores assumem uma postura excessivamente cautelosa e intervencionista na vida da criança ou do adolescente. Isso acontece quando, movidos pelo medo de que a pessoa enfrente dificuldades, frustrações ou desafios, evitam que ela tome decisões, resolva problemas ou tenha experiências fundamentais para seu crescimento. No ambiente escolar, por exemplo, a superproteção pode se manifestar quando os adultos fazem tarefas que a criança poderia realizar sozinha ou impedem que ela interaja de maneira natural com os colegas, com receio de que sofra rejeição ou fracasso.

Muitos pais e professores acreditam que estão “protegendo” quando, na verdade, estão limitando. O que caracteriza uma atitude superprotetora?

Uma atitude superprotetora é caracterizada pelo excesso de cuidado e pela tentativa de eliminar qualquer obstáculo ou dificuldade que a criança ou adolescente possa enfrentar. Isso inclui tomar decisões por ela, evitar que cometa erros, impedir que enfrente desafios naturais da vida e minimizar qualquer tipo de desconforto emocional. Embora a intenção seja proteger, essa postura pode criar uma dependência excessiva e dificultar o desenvolvimento da autonomia e da autoconfiança. Pais e professores superprotetores, muitas vezes, acreditam que estão ajudando, mas acabam limitando o crescimento emocional, social e cognitivo da criança.

Quais são os sinais de que a superproteção está atrapalhando mais do que ajudando?

Os sinais de que a superproteção está sendo prejudicial incluem dificuldades na tomada de decisões, insegurança excessiva, baixa tolerância à frustração e dependência dos adultos para resolver problemas do dia a dia. Crianças e adolescentes que cresceram sob superproteção podem ter dificuldades de socialização, evitar novos desafios por medo de falhar e apresentar baixa autoestima, pois não se sentem capazes de enfrentar o mundo por conta própria. No ambiente escolar, isso pode se manifestar na resistência em participar de atividades em grupo, medo de errar em provas ou trabalhos e dificuldade em lidar com críticas ou correções.

 

 

 

Quais consequências a superproteção pode trazer para o desenvolvimento emocional e social de uma criança com deficiência?

A superproteção pode impactar negativamente o desenvolvimento emocional e social de uma criança com deficiência, limitando sua capacidade de enfrentar desafios e interagir com o mundo ao seu redor. Quando os pais ou educadores evitam que a criança tome decisões, experimente novas situações ou enfrente dificuldades, ela pode crescer com medo do desconhecido e com baixa confiança em suas próprias habilidades. No aspecto social, a superproteção pode dificultar a construção de amizades e a participação em atividades em grupo, uma vez que a criança pode ser constantemente resguardada de experiências naturais de convivência e aprendizado. Isso pode gerar isolamento e uma maior dependência dos adultos, dificultando sua inclusão plena na sociedade.

Como ela pode prejudicar a construção da autonomia e o gerenciamento da frustração?

A autonomia se desenvolve por meio da experimentação e da prática, e a superproteção impede que a criança com deficiência explore suas próprias capacidades. Ao serem privadas de desafios cotidianos, essas crianças não aprendem a resolver problemas sozinhas, tornando-se dependentes do auxílio constante dos outros. A falta de oportunidades para lidar com pequenos fracassos e obstáculos pode comprometer o desenvolvimento da resiliência, tornando a criança mais vulnerável emocionalmente. Assim, qualquer frustração, por menor que seja, pode ser sentida de forma intensa, dificultando o amadurecimento emocional e a capacidade de persistir diante de dificuldades.

De que forma isso impacta a vida adulta — especialmente no trabalho, nos relacionamentos ou na independência?

Na vida adulta, os impactos da superproteção podem ser significativos, afetando a capacidade de adaptação ao mercado de trabalho, aos relacionamentos interpessoais e à busca por independência. Pessoas que cresceram superprotegidas podem sentir insegurança ao assumir responsabilidades, ter dificuldades para tomar decisões e depender excessivamente de outras pessoas para lidar com desafios profissionais e pessoais. No ambiente de trabalho, isso pode se manifestar na falta de iniciativa e na dificuldade de lidar com feedbacks ou mudanças. Nos relacionamentos, a dependência emocional pode gerar dificuldades em estabelecer vínculos saudáveis e equilibrados. A busca pela independência pode ser prejudicada, pois a pessoa pode sentir medo ou insegurança para sair da zona de conforto e assumir controle sobre sua própria vida.

 Superproteção pode ser uma forma de capacitismo?

A superproteção pode ser considerada uma forma de capacitismo porque parte da ideia de que a pessoa com deficiência é incapaz de realizar tarefas ou tomar decisões por conta própria. Quando pais, professores ou cuidadores evitam que a criança enfrente desafios ou assumam responsabilidades, estão reforçando uma visão limitada de suas capacidades, impedindo seu crescimento e autonomia. Esse comportamento, embora muitas vezes motivado pelo carinho e pelo desejo de proteção, acaba perpetuando barreiras sociais e emocionais, dificultando a inclusão plena da pessoa com deficiência na sociedade.

Você defende a ideia de que a superproteção também é uma forma de capacitismo. Pode explicar isso para os leitores do Portal do TEA?

Sim, defendo essa ideia porque a superproteção, ao invés de ser um cuidado positivo, muitas vezes reforça estereótipos de incapacidade e dependência. Quando uma criança com deficiência é constantemente impedida de experimentar, aprender e errar, está sendo privada do direito ao desenvolvimento pessoal, algo essencial para qualquer ser humano. O capacitismo se manifesta quando há uma visão limitante sobre o que a pessoa pode ou não fazer, e a superproteção contribui para isso ao não permitir que a criança explore suas próprias possibilidades dentro de suas habilidades. A inclusão verdadeira acontece quando se oferece suporte adequado, sem impedir que a criança desenvolva seu potencial.

Por que é importante permitir que a criança erre, se frustre e enfrente desafios dentro do seu ritmo?

Errar, se frustrar e superar desafios são experiências essenciais para o crescimento e o desenvolvimento emocional de qualquer criança. No caso das crianças com deficiência, isso se torna ainda mais importante, pois fortalece sua resiliência, autoestima e senso de capacidade. Se a criança for privada dessas vivências, pode crescer com medo de errar, insegura e dependente do auxílio de terceiros. Permitir que ela enfrente desafios dentro do seu próprio ritmo não significa deixá-la desamparada, mas sim oferecer apoio sem impedir sua autonomia. Assim, ela aprenderá a confiar em suas habilidades e a lidar melhor com as dificuldades que encontrará ao longo da vida.

 Como pais e educadores podem apoiar sem limitar? Existe um “ponto de equilíbrio” entre cuidado e autonomia?

Pais e educadores podem apoiar sem limitar ao oferecer suporte e incentivo, sem interferir excessivamente nas decisões e experiências da criança. O ponto de equilíbrio entre cuidado e autonomia está em proporcionar um ambiente seguro, onde a criança tenha oportunidades para aprender por tentativa e erro, desenvolvendo habilidades dentro de suas possibilidades. Isso significa oferecer ajuda quando necessário, mas também permitir que a criança tente resolver desafios sozinha antes de intervir. O segredo está em observar, incentivar e respeitar o tempo de aprendizado, garantindo que a proteção não se transforme em limitação.

Quais estratégias simples você recomenda para quem quer começar a estimular mais independência em crianças e jovens com deficiência?

Uma boa estratégia é começar com pequenas tarefas diárias, como permitir que a criança escolha sua roupa, arrume seus materiais escolares ou auxilie em atividades simples em casa. Outra abordagem eficaz é dar instruções claras e dividir tarefas mais complexas em etapas menores, incentivando a criança a realizar cada parte no seu ritmo. Além disso, reforçar os esforços e conquistas, mesmo que pequenas, ajuda a construir a autoconfiança e a motivação para tentar coisas novas. Criar um ambiente encorajador, onde o erro seja visto como parte do aprendizado, também é essencial para que a criança desenvolva independência sem medo de falhar.

Que mensagem você deixaria para famílias e profissionais que têm boas intenções, mas têm medo de “expor” demais seus filhos ou alunos com deficiência?

A melhor forma de proteger uma criança com deficiência não é evitando que ela enfrente desafios, mas sim dando a ela as ferramentas e o suporte necessário para superá-los. O medo de "expor demais" pode, na verdade, impedir que a criança desenvolva habilidades essenciais para sua autonomia e autoconfiança. Errar, se frustrar e aprender a resolver problemas fazem parte do crescimento de qualquer pessoa. Quando pais e educadores oferecem oportunidades para que a criança explore o mundo dentro de suas capacidades, eles não estão colocando-a em risco, mas sim preparando-a para uma vida com mais independência e segurança. O verdadeiro apoio não está em evitar dificuldades, mas em ensinar a criança a enfrentá-las com coragem e autoconfiança.


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