(Artigo original escrito em 1992)
Desde o início, estão presentes no Brasil movimentos populares; movimentos abolicionista, pela independência, pela República, contra os golpe militar de 64. Sempre lutamos pelos nossos direitos, as lutas sociais passaram a ser mais comuns no Brasil, principalmente depois da abertura democrática.
Não indiferentes a todos esses acontecimentos históricos de mudança, os portadores de deficiência também iniciaram os seu movimento(*). Resumidamente, podemos dizer que tudo começou em meados da década de 70, quando, até então, a pessoa com deficiência era considerada uma espécie de objeto, trancafiada em instituições, sendo cuidada por aqueles considerados “técnicos e especialistas” no assunto. Começaram a surgir várias entidades organizadas em nível nacional, representando toda a classe. Oriundo de um movimento mundial, em 1980, foi instituído o Ano Internacional das Pessoas Deficientes(AIPD), chegando a reunir mais de 1.000 pessoas – portadoras de deficiência ou não – em Brasília, no I Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes. Seguindo o lema do AIPD, “Participação plena e igualdade”, “a principal característica do movimento que surgia foi a representação pelos próprios portadores de deficiência e não mais pelos especialistas”.
À nível internacional foi lançado o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, das Nações Unidas(1982), cujo objetivo é promover medidas eficazes para prevenção da deficiência e para sua reabilitação, visa também a e a realização dos objetivos de “igualdade” e “participação plena” das pessoas deficientes na vida social e desenvolvimento. Isto significa oportunidades iguais às de toda a população e uma participação equitativa na melhoria das condições de vida resultante do desenvolvimento social e econômico. Estes princípios devem ser aplicados com o mesmo alcance e a mesma urgência em todos os países, independentemente do seu nível de desenvolvendo(Parágrafo 01). (O Programa tem sido o nosso principal instrumento de nossa luta.) Aproveitando ainda o AIPD, nesse período foi instituída, pela ONU, a Década da Pessoa Portadora de Deficiência (1982-1992).
Aqui no Brasil, continuavam a surgir as entidades, tanto em nível governamental, como principalmente em nível não-governamental. Todas essas lideranças foram fundamentais para uma das principais etapas da luta travada na década de 80, ocorrendo uma mudança de postura em relação aos portadores de deficiência. Outro grande passo, foi a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência(CORDE), através de um decreto do Presidente da República, e confirmado pelo Congresso Nacional em outubro de 1989, através da Lei nº 7.853. Esta lei estabelece normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência e sua efetiva integração social. Conquistaram também, na Constituição Brasileira de 1988, vários artigos específicos em relação às nossas causas.
Por tudo isso, continuar falando que nada mudou com relação aos portadores de deficiência, não é nada justo. Já contam com muitas conquistas na prática, como por exemplo, o “direito de ir e vir”, onde em pelo menos seis importantes cidades brasileiras já há redução de barreiras arquitetônicas e contam com frotas de ônibus adaptados para usuários de cadeiras de rodas. No mercado de trabalho, está havendo uma grande abertura e reconhecimento da mão-de-obra dos portadores de deficiência, principalmente em empresas de grande porte e de origens multinacionais. No setor da Educação, está ocorrendo cada vez mais a integração de alunos com de deficiência no sistema de ensino regular. Com relação aos esportes, considerado um dos maiores índices de mobilização de pessoas com deficiência, o Brasil vem se consagrando e já atingiu importantes resultados no ranking internacional. E estão sendo criadas “entidades de serviço”, como por exemplo, o Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro(CVI/RJ), fundado em 1988, sendo o primeiro no gênero na América Latina. Vários CVIs estão se espalhando pelo Brasil; eles são criados e coordenados por equipes de profissionais portadores de deficiência que informam e orientam o segmento, suas famílias e comunidades.
Todavia, baseado nessas e tantas outras animadas conquistas é que o movimento se intensifica e ganha forças a cada dia. São inúmeras as formas de participação: palestras, atividades culturais, lutas por direitos adquiridos, passeatas, manifestações públicas, enfim, cada qual com a sua forma de acordo com a sua necessidade. Porém, há uma forma silenciosa, mas de grande efeito e principalmente de importância social e cultural: a escrita!
A escrita teve o seu surgimento com o desenvolvimento da vida social, que começou em determinado momento da história, a exigir que os homens ampliassem o uso das formas verbais de comunicação, necessitando compreender o próprio funcionamento da linguagem. Desse estudo surgiram as formas dissertativas que sempre estão presentes em nosso cotidiano, como por exemplo, nos discursos publicitários, jornalísticos, conversas informais e em nossas vidas pessoais. Segundo Citelli(1994), “em comum entre todas estas formas está o fato de que ideias estão sendo veiculadas, pontos de vistas debatidos, concepções atacadas ou defendidas. E, como se percebe, o mecanismo de comunicação que envolve os agentes discursivos tanto pode estar baseado em formas interpessoais como massivas”.
Hoje e sempre a escrita é algo que possui muitas conotações. Mais do que uma representação através de letras, o texto argumentado, muitas vezes, representa a construção de nossas ideologias! Quando escrevemos, estamos transmitindo algo: informações, conhecimentos e, quase sempre, formando opiniões, motivo de muita responsabilidade de seu autor… E na área das deficiências, não deixa de ser diferente!
Um exemplo concreto, foi a Campanha da Poliomielite. Quando das realizações e veiculações dos anúncios publicitários, eram usados quase sempre o recurso de linguagem (verbal e não-verbal) para divulgar a intenção e importância de uma vacinação em massa; com isso, produziu-se o efeito e a conscientização da população, conseguindo-se o sucesso da campanha, ou seja, as palavras criaram ações cujos objetivos alcançados foi a erradicação da Poliomielite em nosso país. Esse exemplo, nos mostra o mecanismo da argumentação com efeito eficaz. E por que não usar essa técnica em defesa dos direitos de pacientes com deficiência e na construção de sua Cidadania, utilizando, por exemplo, palavras mais diretas e simples, recorrer às estruturas frasais menos complexas, apresentar provas contundentes de que as coisas estão melhorando ou piorando?
De um modo geral, cabe-nos aqui um parêntese para algumas reflexões sobre a pessoa e/ou paciente com deficiência e sua Cidadania, um tema bem atual, pauta de congressos, encontros, reuniões, artigos e revistas especializadas e nos meios de comunicação em geral.
Cidadania, segundo Manzini-Covre(1994), é algo de muitas conotações num amplo sentido. Porém, a grosso modo, uma pessoa com algum tipo de limitação só é realmente reconhecida como cidadã, a partir de sua profissionalização, ou seja, a partir do momento que ela passa a ser alguém produtivo – grande característica geral do sistema capitalista. Mas é um longo caminho até se chegar nesse estágio. Se para qualquer pessoa conseguir um emprego ou qualquer outro tipo de colocação nos dias atuais, é difícil para àquelas que portam algum tipo de deficiência torna-se ainda mais difícil, tendo que realmente provar a sua potencialidade. E, depois de empregada, a cobrança (talvez por inveja de algum companheiro de serviço), é ainda maior, não podendo errar, pois o deslize será sempre associado a sua deficiência.
Para realmente atingir a Cidadania plena, a pessoa deficiente precisa ter garantido o seus Direitos Sociais (trabalho, educação, habitação, saúde, etc) e os Direitos Políticos, como participar de sindicatos, partidos, movimentos sociais, escolares, conselhos, organizar associações para conscientizar governantes, parlamento, assembleias e a sociedade em geral de seus Direitos. Porém, a pessoa portadora de deficiência precisa também se conscientizar de que ao mesmo tempo que tem os direitos civis e sociais, também tem os seus Deveres, como por exemplo, o de sua Participação para ajudar a agilizar todas a conquistas desejadas, uma forma de vir à tona, recuperando (ou construindo) a sua identidade com indivíduo, em busca de justiça e igualdade, liberdade e ao mesmo tempo de individualidade. Individualidade porque, apesar de estar participando de um grupo, cada um deve ter também a sua opinião pessoal e seus desejos pessoais, o que deve ser respeitado pela coletividade. A bandeira de luta pela Cidadania plena do portador de deficiência deve se transformar em seu cotidiano em algo de prazer, satisfação, sob condições que respeitem a própria vida, tendo ainda chance e respeito à questão do desejo e a construção da identidade do indivíduo com as atividades que realiza.
Talvez, um dos caminhos mais curtos para que alguém com deficiência conquiste a sua Cidadania plena, é a tão falada e almejada Integração Social. Isso significará vez e voz; acesso à educação; condições de progredir culturalmente; ingresso ao mercado de trabalho; sentindo-se útil; participação em atividades recreativas, esportivas, culturais, comunitárias e sociais, permitindo a inserção da pessoa deficiente na rotina da corrente normal da vida.
Do mesmo modo, podemos garantir que a escrita tem grandes contribuições a oferecer a nossa área. Dividindo essas pessoas em dois grupos distintos, notaremos que uma pequena parte já tomou consciência de seus Direitos e Cidadania, reunindo-se em Movimentos Sociais (individual ou coletivo) e criando associações representativas, como por exemplo, os CVIs; mas uma outra grande parte nem se quer ainda tomou consciência que têm Direitos e Deveres perante à Sociedade. Então, através da escrita, podemos oferecer subsídios para reforçar a lutas dos portadores de deficiência já ativos e, ao mesmo tempo, oferecer condições para que os demais, na medida do possível, conheçam seus Direitos e comecem gradativamente a participar da vida social e política em sua comunidade.
Não podemos, no entanto, esperar que todos tenham uma mesma forma de participação, pois cada um conta com um modo diferente de agir e pensar, tendo sempre em mente, que a Cidadania é um direito de todos, principalmente daqueles mais limitados ou prejudicados. Exemplo disso, segundo Glat(1994), foi um encontro de APAEs realizado certa vez no Rio de Janeiro, onde foi dado voz aos portadores de deficiência mental, sendo que alguns falaram pela primeira vez de suas vidas, o que gostavam e o que não gostavam e o que faziam ou não faziam. Perguntados sobre o que significava Cidadania para eles, uns opinaram que seria votar nas próximas eleições; para outros eram trabalhar e/ou estudar no sistema regular de ensino e, assim, cada um foi dando a sua opinião. Todas essas formas entendidas como Cidadania são válidas e todas essas pessoas devem ser encorajadas a se envolverem em sua escola, trabalho, associação de classe e na sociedade em geral, num papel ativo em nosso cotidiano, fazendo as nossas próprias escolhas, sendo encorajados a levá-las adiante. É preciso ainda, mais diálogo entre os portadores de deficiência e os profissionais que com eles trabalham, uma relação de intercâmbio, de uma forma democrática e igualitária, onde os pacientes deixam de ser meros receptadores passivos do velho sistema de reabilitação, mas sim, um cidadão consumidor consciente do que querem e precisam, além de criativos em suas vidas…
A luta por tudo isso também pode ser feita através da escrita e com a colaboração de nós, os profissionais… Baseando-se em nossa experiência pessoal, podemos revelar que iniciamos escrevendo sobre deficiência em 1989. Nesse período já escrevemos e publicamos documentários, entrevistas, resultados de pesquisas, artigos de opinião e alguns livros técnico-científicos em torno da temática. E dentre todo esse contexto, nada gera tanto comentário quanto os textos de opinião pessoal. Todos nós precisamos nos manifestar, tendo os nossos próprios conceitos, mesma forma de não ficarmos esquecidos num canto pela família, pela sociedade e pelas autoridades em geral, conquistando com dignidade, nossa Cidadania no convívio social.
Outra área em que precisamos começar a investir e trabalhar através da escrita, é com relação à informação. Isso porque, a maior parte das conquistas dessas pessoas ou de nossos especialistas com relação à elas, direitos e recursos do nosso campo, como já frisados, quase nunca chega ao conhecimento da grande maioria. Através de textos, poderemos chegar ao conhecimento dos órgãos de informação pública, de forma regular e automática, fazendo circular nos meios de comunicação, informações sobre nossas atividades, artigos de fundo, notas informativas. Poderemos nós mesmos, produzir nossos jornais alternativos, boletins, folhetos, etc. Poderemos também, através da linguagem verbal, realizar entrevistas em rádio e televisão e em qualquer outro meio adequado. São inúmeras as nossas possibilidades.
Informação também significa Educação do Público, principalmente num país com tantos problemas sociais, com violência, os assaltos à mão armada e de um alto número de acidentes automobilísticos e de trabalho (cerca de três mil por dia), o que aliás, causam aumento de aquisição de deficiência. Escrever, é uma forma de Prevenção, além de despertar a sociedade para o que realmente é uma pessoa portadora de deficiência e para suas reais necessidades. Por outro lado, é também uma forma de conscientização social.
Concluímos que o trabalho escrito através do texto informativo e/ou argumentativo, dentro de uma linguagem construtiva e adequada aos leitores, é uma forma de ação, realmente democrática e aberta, tornando-se uma grande arma nas lutas sociais promovidas por diversos grupos e classes, o que poderá igualmente liberar ou oprimir, maquiar ou revelar como são feitos as manipulações, ideologias, dentre outras alternativas. Sobretudo, argumentar, opinar e informar são um grande exercício de Cidadania…
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* Fontes sobre o movimento social, “Ética e legislação: os direitos das pessoas portadoras de deficiência no Brasil”. Organizado por Rosangela Berman Bieler e editado pelo Rotary Club do Rio de Janeiro; “Mídia e deficiência: manual de estilo”, editado pela a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência-CORDE, em conjunto com o Centro de Vida Independente do Rio de Janeiro, 2ª edição, 1994.
Fontes Citadas:
CITELLI, A. O texto argumentativo. São Paulo; Scipione, 1994.
GLAT, R. Cidadania e o Portador de Deficiência: Um novo campo de atuação para os profissionais de Educação Especial. Brasília; Integração/SENEB, Nº 11, 1994.
MANZINI-COVRE, M. de L. O que é cidadania. São Paulo; Brasiliense, 1994.