Publicado pela Rede SACI – São Paulo-SP, em 18/03/2003
Nesse artigo, Emílio Figueira dá outros exemplos de pessoas com deficiência que têm a Arte no centro de suas vidas
Guyrá -Pássaros do Brasil
Outro exemplo é paulistano. Quatro músicos originários de diferentes estilos musicais, mas traçando sua trajetória artística de forma modesta e profissional, uniram-se para cantar o que tinham de amor em comum: o nosso país.
O grupo Guyrá – que no idioma tupi quer dizer pássaro -, foi formado há dois anos e já representa o surgimento da nova geração da tradicional música de raiz, associando o folclore popular com canções de autores contemporâneos em interpretações marcantes, arranjadas em instrumentos acústicos, respeitando e ao mesmo tempo renovando a autêntica música brasileira.
Fruto de uma salada musical, dos quatro componentes do Guyrá, três são portadores de deficiência visual: Claudio Teixeira (flauta e vocal), cuja maior parte de sua vida artística foi, e ainda é, em palcos de festivais de música, o que nos faz concluir sua vocação contra-lucrativa, tendo uma formação clássica, responde pelos arranjos de sopro e interfere gravemente nos arranjos vocais; Lothar Bazanella (gaita, scaleta, percussão e vocal), participando já há quinze anos de coros e corais em universidades e centros culturais, sendo também poeta e contador de causos com forte sotaque gaúcho; Laércio Sant’anna (viola caipira, violão e vocal), compositor já conhecido na música sertaneja, tendo suas canções interpretadas por Leandro e Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano e outras duplas, autor, dentre outro, do sucesso “Horizonte Azul” e, por fim Alvaro Gregorio (voz e violão), único com visão normal no grupo, durante quase uma década apresentou-se nas casas noturnas de São Paulo cantando a bossa nova de Tom Jobim e os sambas de Chico Buarque, fazendo também jingles para rádio e tv, escrevendo uma coluna semanal sobre música brasileira em jornais paulistas e é folclorista amador nas horas de lucidez.
Recentemente em São Paulo, o grupo apresentou o show Pássaros do Brasil, com canções de Rolando Boldrin, Renato Teixeira, Vital Farias e outras do folclore nacional, intercaladas com causos e versos inspirados na vida do homem do campo.
Motivados pela criatividade e oitenta minutos de música e prosa, fazem em suas apresentações, uma viagem pelos sentimentos mais profundos da alma sertaneja até as preocupações ambientais mais modernas, unindo dessa forma a raiz musical brasileira e a proposta ecológica de um viver mais simples e integrado, dando ao espetáculo um sabor novo, diferente, algo atual sem a preocupação em ser moderno, tradicional sem a rigidez erudita, simples sem ser amador.
No histórico do grupo já conta com apresentações na capital paulista no SESC Itaquera, Centro Cultural São Paulo, CADEVI, Teatro Paulo Eiró, Teatro Arthur Azevedo, Parque da Água Branca, Villagio Café e SESC Vila Mariana. Além de participações em programas de rádios e tvs, tais como, Rádio Mundial (programa Café com Astral, de Kátia Ripane), Canal Rural (programa Célia e Selma) e Canal Comunitário (programa Café Cultural).
Partituras em Braille e Trabalhos Acadêmicos
“Quando se criou o código braille, ninguém pensou que a escrita também poderia se estender às partituras. Hoje, meus alunos decoram as notas e tocam como qualquer outro músico”. Essa frase é do professor e músico Neri Ribeiro da Silva, em uma entrevista ao jornal gaúcho Zero Hora, em 18/06/2001. Com determinação e sensibilidade, ele conseguiu transformar a vida de um grupo de deficientes visuais por meio da música.
Ensina violão clássico para vinte deficientes visuais da região do Planalto Médio, em Passo Fundo. Por meio da música, eles estão se integrando à sociedade, provando que o talento e a persistência superam as limitações físicas. O método de ensino da teoria musical é simples e não difere em nada das aulas normais de português e matemática para cegos. As cifras das músicas obedecem a escrita braille e são acompanhadas pelos alunos por meio do tato. No lugar das letras do alfabeto, os pontos em relevo combinados formam as notas musicais.
A ideia de desenvolver o projeto começou quando Neri conheceu, pela TV, o trabalho de uma professora brasiliense. Ele se comoveu com a possibilidade de ensinar teoria musical a essas pessoas. Decidido a implantar a técnica, viajou a Brasília, onde estudou a musicografia braille, depois de aprender a ler e a escrever no sistema criado pelo francês Louis Braille, no século 19. Com apoio da vice-reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários da Universidade de Passo Fundo (UPF), o professor iniciou o curso na Faculdade de Artes e Comunicação. Nesse período, as aulas, individuais e semanais, já revelaram novos talentos.
Um trabalho que pretendeu mostrar de que maneira a memória pode resgatar a história de um aprendizado também merece um registro. Foram estudadas as memórias de quatro músicos deficientes visuais que tiveram o início da sua formação no Instituto São Rafael, a qual foi a segunda experiência brasileira – e a primeira durante a República Velha – de uma escola especializada na educação da pessoa cega. Músicos que ingressaram na profissão a partir dos anos 30, 40, 50 e 60.
A pesquisa foi fruto de uma tese de mestrado em História da Educação, defendida por Flávio Couto e Silva de Oliveira [1], na Faculdade de Educação da UFMG em maio de 1995, com o título de “Histórias de Um aprendizado: Os Signos de Deleuze Nos Relatos De Vida de Músicos Cegos”. Teve como eixo teórico o livro “Proust e Os Signos”, de Gilles Deleuze sobre a obra de Marcel Proust. A contribuição que o pensamento de Deleuze deu ao presente trabalho afirma-se, sobretudo na utilização feita dos quatro tipos de signos através dos quais o autor estuda a Recherche: signos mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos. O trabalho de Oliveira, focou os seguintes artistas:
– Asdrúbal Teixeira de Sousa Filho, o Dubinha. Natural de Juiz de Fora, contava com 82 anos na época da entrevista (1993). Nos anos 30 formou-se em piano no Instituto são Rafael e iniciou-se profissionalmente como pianista de cabaré na noite de Belo Horizonte, tendo atuado com sucesso nos principais dancings da cidade;
– Geraldo Nepomuceno, natural do Ceará, tornou-se músico no Instituto São Rafael em meados dos anos 40, onde ajudou a criar, juntamente com seu irmão Chico, o conjunto Titulares do Ritmo. Formado somente por músicos cegos, o conjunto estreou nos programas de auditório da Rádio Inconfidência. Tendo obtido sucesso nas rádios mineiras, os Titulares do Ritmo mudaram-se para São Paulo, onde desenvolveram uma brilhante carreira. Com mais de 10 discos, entre gravações solo e acompanhando artistas famosos, ficaram extremamente conhecidos em todo o país. Foram inclusive citados por Rui Castro em seu livro Chega de Saudade e em algumas enciclopédias de música brasileira;
– Luísa Nepomuceno, que nos anos 40 veio do Ceará para Belo Horizonte com seus irmãos Geraldo e Chico para que os três pudessem estudar em uma escola especializada para deficientes visuais. Formou-se professora de piano no Instituto são Rafael e lá lecionou durante toda a sua vida. Seu depoimento é altamente significativo das dificuldades que enfrentou, como deficiente visual e como mulher e
– José Lucena Vaz, ex-professor da Universidade Federal de Minas Gerais, foi responsável por introduzir, durante os anos 70, os estudos acadêmicos de violão nas universidades brasileiras. Ainda hoje é respeitado por músicos jovens e considerado um dos mais importantes mestres do violão no Estado de Minas Gerais.
Foram realizadas com esses músicos longas entrevistas de história de vida nas quais eles relataram suas relações sociais (signos mundanos), afetivas (signos amorosos), com o mundo das qualidades sensíveis (signos sensíveis) e com a arte, especificamente a música (signos da arte). Esses depoimentos abarcaram em seu todo, o período que vai desde antes da fundação do Instituto São Rafael (1926) até a década de 1970.
Este trabalho também rendeu fruto literário. Em 2000, com o título “Signos e Aprendizado nas Memórias de Músicos Cegos”, o trabalho premiado em primeiro lugar na categoria ensaio no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte.
Nota
[1] Doutorando em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Flávio Couto e Silva de Oliveira é formado em História e Mestre em Educação pela mesma universidade. Lecionou História da Arte, Cultura Brasileira e Estética em sua universidade de origem e na Universidade Estadual de Minas Gerais (escolas de Belas Artes e de Música). Na PUC Minas lecionou a disciplina Direitos Humanos e Sociedade Inclusiva. É professor licenciado da rede municipal de ensino da Prefeitura de Belo Horizonte, onde atuou também no Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação – CAPE/PBH. Atualmente, divide o seu tempo entre a sua pesquisa de doutorado sobre a história da educação musical nas escolas primárias de Belo Horizonte (1920-1970) e sua atividade musical como cantor e compositor.