Marketing Primitivo da Deficiência: A Venda E O Lucro Fácil Através Da Piedade Alheia



NOTA: Ensaio inédito até agora, onde Emílio Figueira aborda um subtema quase nunca falado com relação às pessoas com deficiência, trazendo uma longa entrevista realizada em 1994 com o já falecido antropólogo João Baptista Cintra Ribas, que defendeu uma tese de doutorado sobre esse tema.



A cena se repete diariamente nas ruas, cruzamentos, avenidas e semáforos das grandes/pequenas cidades e capitais. Sempre há os pedidos de esmolas: crianças, mulheres e homens maltrapilhos – a grande maioria vítimas da má situação sócio-política-econômica do país. Dentre esse contingente de pessoas, aumenta também a cada dia, a presença de portadores das mais variadas deficiências. Muitos como vendedores ambulantes. Outros como simples pedintes de esmolas. O que poucas pessoas sabem, é que por trás disso, há uma verdadeira “indústria comercial”. Mas de quem realmente é a culpa?



A questão é bem mais ampla que possa parecer. Segundo o Consultor Internacional em Reabilitação, professor Otto Marques da Silva (1), “muitos portadores de deficiência são levados a situação de ‘vender’ a deficiência devido a falta de opção, porque precisam ganhar o seu sustento imediatamente. Então eles são obrigados pela necessidade de sobrevivência a topar uma parada dessas: viver da caridade alheia”.






Numa sociedade capitalista como a nossa, onde o homem é classificado e valorizado devido a sua capacidade de produção, nem sempre há espaço para todos. E, segundo Ribas (1989), “as iniquidades sociais atingem toda a população, recaindo com maior gravidade sobre a população deficiente”. O problema se agrava ainda mais, quando muitos ainda estão desamparados pelas leis legais e por autoridades responsáveis, como por exemplo, o Estado.



Diante desse quadro caótico, muitos portadores de deficiência resolvem “ir à luta” por si mesmo. Batem em várias portas de empresas e comércios, ouvindo a tradicional frase “a vaga já foi preenchida”, apesar da placa “precisa-se” ainda estar na faixada do prédio. A eles só restam os trabalhos ambulantes em semáforos nos cruzamentos de movimentadas avenidas, ou pontos fixos de camelôs. Encontraremos ainda, com seus aparelhos ortopédicos, bengalas canadenses, muletas, por detrás de barracas, ou em suas cadeiras de rodas com o tabuleiro de seus produtos no colo. Muitas vezes, em comercializações clandestinas.



OPORTUNISMO



Se por um lado existem àqueles que lutam pela sua sobrevivência, por outro há quem se utilize disso com má-fé. Usam do constrangimento pessoal para apelar ao sentimento de consternação e caridade. Exemplo concreto, são pessoas que, com o seu “marketing primitivo”, exageram e/ou ostentam as suas deficiências. É o que a Sociologia chama de “interação social com fins lucrativos”. Quem por exemplo, nunca viu ou comprou um bilhete de loteria de um “ceguinho” de óculos escuros e bengala? O negócio é tão lucrativo, que há até casos de pessoas sem portar deficiência e que se disfarçam nos semáforos e calçadas, como por exemplo, falsos paraplégicos para conseguir dinheiro fácil.



Mais que conceito, fatos como estes podem ser gerados sobre os portadores de deficiência? Geralmente são duas as imagens. Segundo Ribas, “ao mesmo tempo coitadinho e herói: Coitado – porque naquelas condições físicas, tem que se virar para ganhar dinheiro. Herói porque enfrenta essas condições físicas, luta contra a própria vergonha e vai oferecer Mentex nas ruas: Quem quer comprar?”



Se de um lado este deficiente teve de lutar contra a própria vergonha e se expor na rua – vendendo coisas que talvez as pessoas comprem apenas para “ajudar” -, de outro ele sabe muito bem que o sentimento de dó e piedade que a sua imagem possa despertar nos outros é a sua arma. Ele sabe, muito bem, que os motoristas constrangidos e as motoristas piedosas comprarão o Mentex de suas mãos. Ele sabe, com certeza, que ganhará bom dinheiro. Caso contrário, não iria para a rua expor a sua deficiência sob sol incandescente (Ribas, 1989).



O PROBLEMA A LUZ DA ANTROPOLOGIA



Na verdade, o termo “vendendo a deficiência”, foi criado pelo antropólogo João Baptista Cintra Ribas (2), que nos concedeu uma entrevista exclusiva para este nosso ensaio. A mesma segue em sua integra:



Pergunta: Muitos portadores de deficiência estão praticando o que o senhor intitula de “vendendo a deficiência”. Sabemos que há àquele que por falta de oportunidades sociais, ingressam nessa prática e/ou em outros tipos de sub-empregos. Mas outros também usam de má-fé, isso que vamos chamar de “marketing primitivo” – para ganhar dinheiro oriundo da caridade alheia. Como o senhor analisa estes dois lados da questão?



Professor Ribas: O Brasil apresenta uma realidade muito propícia para aquilo que na Antropologia chamamos de “malandragem”. É verdade que a população brasileira, cada vez mais pobre, precisa encontrar expedientes de sobrevivência os mais diversos. Mas, por outro lado, esta realidade brasileira somada a imagem da deficiência se unem naquilo que você chama muito bem de “marketing primitivo”. Na realidade, a deficiência se torna, para muitos, uma mina de dinheiro. Conheço deficientes que tem carros adaptados, aparelhos eletrônicos, casa própria, tudo comprado com o dinheiro da venda ambulante do semáforo.



Pergunta: Até que ponto a presença dessas pessoas nas ruas pedindo ou vendendo objetos (muitos impondo), reforça estigmas e influem na imagem do portador de deficiência?



Professor Ribas: Mais que o estigma, acho que elas reforçam o sentimento de piedade. Para o pensamento popular, os deficientes acabarão sendo sempre os necessitados, coitados, pedintes. Mas esta é justamente a imagem que aqueles que estão nos semáforos querem ter. Se não, eles não ganham dinheiro.



Pergunta: Em contra partida, qual o comportamento e o que pensam esses vendedores/pedintes?



Professor Ribas: No meu entender, eles são de fato “malandros”. Não são necessariamente maus sujeitos. Também, na maior parte, não são bandidos, não se metem em atividades ilícitas, não são contra-lei. Pode ser que existam alguns que praticam atividades contrárias a lei e aos costumes sociais, mas acho que são a minoria. A maioria é composta de “malandros” que sabem que têm a deficiência como arma de constrangimento e de reforço de piedade. Um exemplar da Revista Veja (Suplemento São Paulo) de 1992 (3), mostra um deficiente, portador de uma lesão mínima, que aumentava sua própria imagem de deficiente (enfaixando o rosto, usando muletas quando não precisava, apenas para ganhar dinheiro). Com isso, comprou uma casa própria.



Pergunta: O Senhor conhece outros casos desta natureza?



Professor Ribas: Sim, já me deparei com vários casos iguais. A grande parte dos que recorrem à Assembleia Legislativa de São Paulo usam de deficiência. Uma vez apareceu por lá uma garota aparentemente surda. Escreveu num bilhete que precisava de dinheiro porque havia sido roubada por alguém que também tentou lhe estuprar. Quando foram checar seus dados, e verificaram que poderia estar mentindo, ela fugiu correndo. Depois foi vista pedindo dinheiro para outras pessoas.



Pergunta: Conhecemos portadores de deficiência que recebem esmolas mesmo sem serem pedintes, nos simples gestos de andarem pelas ruas ou entrarem em lojas fazerem compras. Como o Senhor analisa isso? Pode ser encarado como simples ato de fraternidade do povo brasileiro?



Professor Ribas: Os deficientes que recebem esmolas não são diferentes dos que vendem Mentex nos semáforos. Mais do que fraternidade, acho que a população lhes dá dinheiro porque sentem piedade por eles ou até porque querem se ver livres deles. Eles constrangem, e sabem disso.



Pergunta: Certa vez, o senhor nos disse que o “grande problema é a ausência de uma política nacional de Reabilitação. No entanto, tal política tem que passar também por uma política nacional econômica mais geral. Antes de serem deficientes, aqueles que vão para os semáforos ou para venda ambulantes são pobres ou fazem da pobreza um meio de ganhar a vida”. O senhor continua sustentando esse ponto de vista?



Professor Ribas: Continuo sustentando esse ponto de vista. Porém, agora, percebo que as coisas vão um pouco além. Mesmo que haja uma alteração significativa na política nacional e que as filosofias de reabilitação sejam repensadas visando a realidade do nosso país, acho que os próprios deficientes conseguiram trabalhar bem a própria imagem. Isso quer dizer que eles estão mendigando não apenas por culpa da economia ou falta de reabilitação, mas também porque aprenderam a trabalhar a própria imagem. Eles são responsáveis pela vida que levam, e uma boa parte quer continuar levando essa vida.



Pergunta: Ainda referente à política de Reabilitação, sabemos que há um velho problema de portadores de deficiência que não se dão com as entidades reabilitacionais. Isso pode ser consequência, muitas vezes, da falta de uma política de Reabilitação verdadeira e eficaz? E ainda: existem as más e as boas entidades?



Professor Ribas: Acho que a reabilitação vem mudando no Brasil. É verdade que ainda existem as instituições conservadoras. Mas muitos profissionais de reabilitação (incluindo médicos) já discutem com os deficientes a respeito de seu próprio tratamento. Vejo essa discussão acontecendo hoje, por exemplo, na DRPV do Hospital das Clinicas de São Paulo. De qualquer forma, os deficientes precisam continuar discutindo reabilitação. Mas não como antes. Os próprios portadores de deficiência chegaram a ser muito autoritários. Os profissionais de reabilitação, também. Então, era só autoritarismo. É preciso que, com cordialidade e ponderação, sentemos a mesa para discutir.



Pergunta: Ligando as duas partes, será que o baixo número de entidades, falta de vagas e o desemprego no país, colaboram cada vez mais o número aumentar de pessoas “vendando a deficiência”?



Professor Ribas: Sim, mas não é só isso. Também não acho que faltam muitas vagas. A questão não é essa. Pode ser que não existam instituições de reabilitação em número necessário fora das grandes capitais. Mas sabe-se que 80% das deficiências não necessitam de instituições. Pode-se fazer reabilitação comunitária. Em São Paulo as instituições têm conseguido dar conta de atender a praticamente todos. Além disso, o número de deficiência vem caindo. Não estou dizendo que as instituições não têm parte de culpa disso. Estou dizendo que temos que fazer uma análise mais ampla. Antes, responsabilizávamos as instituições por tudo. Elas eram o grande mal. Hoje, já não se pode ter uma visão tão estreita.



Perguntas: Tudo bem. O senhor acentuou que não devemos mais generalizar o problema somente as entidades. Mas há ainda um ponto que gostaríamos de levantar. Na revista citada acima, um trecho diz: “Há ainda um bom contingente de pessoas que utilizam os cruzamentos para campanhas filantrópicas – algumas bem-intencionadas, outras um pretexto para se ganhar dinheiro fácil, abusando da boa-fé alheia”. Realmente há quem se utilize do nome de portadores de deficiência com fins lucrativos?



Professor Ribas: Sim. Conheço alguns grupos que se dizem instituições de ajuda aos deficientes. Na verdade, eles exploram o nome de alguns deficientes para ganhar bastante dinheiro. Por enquanto, é bom não procurar apontar quais são esses grupos. É perigoso.



Pergunta: Concluindo, quais as saídas que o senhor acredita ser necessária para solucionar o problema de “venda da deficiência”?



Professor Ribas: Não acho que haja uma saída próxima para o problema da ” venda de deficientes”. A questão é realmente complexa. Envolve valores culturais, realidade econômica e política, além da construção da identidade por parte dos próprios deficientes.



UMA BREVE VOLTA NA HISTÓRIA



Embora o termo “marketing primitivo” tenha sido criado por nós às portas do século XXI, essa é uma prática que vem de muito longe. Basta mergulharmos nas páginas do livro “A Epopéia Ignorada” (1987), de Otto Marques da Silva. Nele, vamos encontrar o problema da mendicância organizada nos séculos XVI e XVII. Diz o autor:



Muito embora a teoria do humanismo renacentista procurasse valorizar o homem, na prática as situações de vida continuavam muito abaixo de um mínimo aceitável. A necessidade de sobrevivência continuava levando muitos a recorrer não apenas à esmola como a expedientes menos honestos, como o furto e o dolo. Os mais ágeis e menos escrupulosos chegavam a tirar vantagens muito acentuadas, ao passo que os doentes e os deficientes socorriam-se das esmolas e muito sofriam som a desleal concorrência dos falsos mendigos e falsos doentes.



Existiam entre eles uma espécie de organização, onde encontravam-se diariamente para beber, comer, saber as novidades e divertir nos famosos e comentados “Páteo dos Milagres”, logradores mal iluminados e infectos da mais triste memória. “A noitinha aos poucos iam aparecendo os mais variados tipos de verdadeiros e falsos mendigos; amputados, paralíticos, cegos, epiléticos – cada qual trazendo em seus alforges ou debaixo dos braços algum alimento ou bebida. Lá muitos abandonavam suas muletas e bengalas, transformando-se em pessoas bem dispostas que dançavam todo tipo de música e que bebiam à vontade, fartando-se sem a mínima preocupação com eventuais dificuldades no dia seguinte”.



A Espanha, a Itália, a Inglaterra, a Alemanha e todo o resto da Europa viviam situações quase que inteiramente semelhantes durante diversos séculos e que, devido ao alheamento da nobreza, da burguesia e dos governantes, muito demoraram para ser sanadas”, diz Silva, destacando em suas obras “Dentre os que obtinham mais e melhores esmolas estavam os mendigos com deficiência física mais sérias ou que mais tocavam a população”.



 NOTAS



1 – Depoimento de Otto Marques da Silva, no livro “A Deficiência nossa de cada dia”, de Luiz Celso Marcondes de Moura. Ed. Iglu, 1994.



2 –   Joâo Baptista Cintra Ribas, é doutorado em Antropologia pela Universidade de São Paulo e professor da mesma matéria no Curso de Comunicação Social (Publicidade & Propaganda) da Universidade Paulista. Autor de inúmeros artigos e livros, dentre os quais destaca-se o mais lido da área – ”O que são pessoas deficientes”. Concedeu-nos esta entrevista exclusiva em 15 de maio de 1994.



3 –  A matéria chamava-se “Os shoppings do sinal vermelho”, assinada por Sérgio Ruiz Luz, era reportagem de capa do suplemento Veja-SP. de 25 de março de 1992. O box chamado “Profissão: Mendigo” (colaboração de Roberto Loffel), narra a história do deficiente citado na entrevista.



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