Um dos grandes privilégios que tive foi ter estudado na
Universidade do Sagrado Coração – a USC de Bauru, uma instituição comunitária
católica, ela pertence ao Vaticano – Roma na Itália. E por ser administrada na
época por freiras, tinha todas as características físicas e humanitárias das
instituições europeias. Começando pelo seu tamanho de oito quarteirões
quadrados, com extensos e floridos jardins desenhados pelos mais habilidosos
jardineiros. Com o sol irradiante que faz em Bauru, eles ficavam mais lindos
ainda. À noite, a iluminação destacava o charme que muitos, na falsa ilusão de
que quem corre têm melhores chances na vida, nem os percebiam.
Como também não percebiam dois senhores bem humildes e
uniformizados que faziam faxina no primeiro bloco. Passavam o dia varrendo o
chão do pátio, corredores, rampas, limpando vidraças das salas de aulas e
atividades que lhes cabiam. A USC tinha na época perto de quarenta mil alunos
somando os três períodos de aulas. Cansei de observar alunos, professores,
funcionários, dirigentes passarem por esses senhores sem ao menos esboçar-lhes
um cumprimento.
Talvez eu tenha colocado reparo nisso, porque desde o começo
sempre passei por eles e dei um bom dia, uma boa tarde. No começo eles
estranhavam, pois quase ninguém fazia isso. Com o tempo, eles me retribuíam com
sorrisos. Sempre que possível, eu parava e trocávamos algumas palavras. Havia
momentos que estava em plena aula, eles limpando as vidraças pelo lado de fora,
davam-me uma acenada.
Tinha momentos que, quando estava me aproximando, eram eles
que tomavam a iniciativa de me cumprimentar, até perguntar algo mais do tipo
“como vai, doutorzinho?”, pois às vezes eu estava com o meu jaleco de aluno de
Psicologia.
A recordação desses faxineiros me chama para refletir sobre
as relações humanas aceleradas e quase mecânicas que estamos vivendo
atualmente. Pelo menos as mais básicas, que muitas vezes não nos permitem
perceber o outro. O fato de cumprimentá-los não me fazia uma pessoa melhor do
que ninguém. Desde pequeno tive como hábito ver todos por iguais, ter amigos de
todas as profissões e níveis sociais.
Continuando focado no período que morei em Bauru, residia em
um bairro bem de periferia, rua ainda de terra, esburacada. A casa de minha avó
tinha uma grande varanda coberta, com confortáveis cadeiras. No começo da noite
sentava-me lá. Meus vizinhos, faxineiros, garis, pedreiros, caminhoneiros,
cortadores de cana, iam chegando, sentando-se e a gente formava rodas de
bate-papos. Como era bom ouvi-los falar, contar suas rotinas, histórias de
vidas, superação de obstáculos, sonhos, angústias, desejos.
Muitas narrações engraçadas. Meu Deus, como eram
enriquecedores aqueles momentos. Era o encontro natural das duas classes de
intelectuais. Eu, um intelectual acadêmico que adquiri todo o meu conhecimento
por meio de livros e estudos em materiais produzidos por outros pensadores. E
eles, os intelectuais orgânicos que adquiriram seus conhecimentos no dia a dia
da lida com a vida. Conhecimentos esses que com certeza nunca encontrarei em
nem uma biblioteca do mundo.
Área
Crônicas 2020 à 2021